Friday, November 30, 2007

Umbigo.




O umbigo se sentia excluído.
Tudo naquele corpo tinha sua utilidade. Menos ele.
E todos faziam questão de demonstrar publicamente sua hostilidade para com o miserável.
As veias, malditas, que eram os cabos de fibra óptica do corpo, o zombavam.
A carne, infeliz, que era a polpa madura do corpo, o caçoava.
E os nervos, desgraçados, que eram as engrenagens do corpo, o chacoteavam.
Sem falar dos órgãos altivos e sanguinolentos que, se ele permitisse, seriam capazes de lhe cuspir na cara.
As células, velhas ou novas, frequentemente perguntavam-lhe: “Qual a utilidade de um furo no meio da barriga?”. E ele, envergonhado, encolhia-se em seu próprio orifício.
Os únicos amigos do umbigo eram os pêlos grandes, grossos e crespos que cresciam na vizinhança da barriga. Muitos deles costumavam pinicar-lhe as dobras, mas ele sempre os perdoava. “Pobres pêlos... estão precisando de uma aparada.”
E a cada circulada do sangue, o corpo se revoltava cada vez mais com a sua presença desnecessária. “Umbigo inútil! Para que te queremos?!” roncava o estomago por detrás da pele gordurosa do umbigo. “De buraco já me basta eu!” berrava sonoramente o ânus do outro lado do corpo. “Tu não passas de uma cicatriz dispensável, umbigo!” gritavam as vísceras.
Cabisbaixo, a cada ofensa, o umbigo encolhia-se mais e mais para dentro do corpo.
Até que relou no intestino. E esse, bravo pelo ultraje do ato, empurrou-lhe com todas as forças de seus tentáculos gelatinosos para frente. O estomago, pâncreas, fígado e até mesmo as costelas, trataram de apoiar a atitude do intestino e ajudaram-no a empurrar o umbigo maldito para longe. Em menos de meio minuto, todos os órgãos perto das redondezas do alvo, empurravam-no para fora, e os que não podiam participar, ficavam na torcida, gritando injurias e ofendendo o umbigo. E ele, já triste e conformado, deixava que o banissem com toda a passividade possível, e até os ajudava, inclinando-se para frente, a fim de facilitar a expulsão.
E após dois minutos de frenético movimento de tripas e veias, a pele cedeu e o umbigo despencou do corpo. Entretanto, não contavam que nele, estivessem grudadas algumas veias que se ligavam ao fígado, e no fígado estava escorado o pâncreas, que no brusco puxão rasgou o diafragma que sustentava os pulmões e o coração, que no impacto, levaram consigo o intestino, que se entrelaçou com alguns nervos, e estes puxaram junto a bexiga. E, pelo buraco que se formou no centro da barriga com a queda, todos os outros órgãos arrastaram-se um ao outro até espatifarem-se completamente no chão, desconstruindo todo o organismo, que demorou nove meses para ser edificado, com a ajuda, em especial, de um cordão umbilical.

Sunday, November 25, 2007

O morto mais lindo do mundo.




I

Quando viu o corpo na mesinha de operação pensou que fosse algum funcionário do hospital e que aquilo não passava de uma brincadeira sem graça. Só quando olhou a ficha do paciente, um arrepio subiu-lhe á nuca, e pôde comprovar que de fato se tratava do morto.
Nesses nove anos de profissão, jamais tinha visto um morto tão belo e bem conservado. Estava realmente morto, a falta de pulsação indicava isso. Mas, algo nos globos brilhantes de seu rosto contradizia sua situação. Tinha-se a sensação de que a qualquer momento ele iria deixar escapar um respiro, um piscar de olhos, um bocejo, um espirro.

Em todo o caso, o trabalho não podia parar. Ela foi até o armário onde guardava suas ferramentas de trabalho, tirou de uma das gavetas um bisturi, e seguiu em direção ao morto. Marcou, com uma caneta, um pontinho um pouco abaixo do pescoço, e outro no umbigo do morto.
Posicionou delicadamente a fina lamina na pele macia dele, tentou empurrar o bisturi estomago adentro, mas aquilo lhe parecia tão profano que não o foi capaz.
Que direito tinha, ela, de machucar aquele corpo incrivelmente belo, que apesar das falências vitais, ainda emitia um frescor tão vivo e irresistível? Um simples corte seria capaz de danificar a imagem perfeita que tinha a sua frente.

Não era possível que estivesse morto.
Aquele corpo feria seu orgulho. Por sua mesa de cirurgia já havia passado corpos falecidos em acidentes de carro, em acidentes de avião, envenenados, esfaqueados, suicidas, deformados, homicidas, decepados, decapitados, baleados. Mas nunca, nada jamais comparado aquilo.

Parecia um santo, um anjo, Deus personificado apenas para o seu prazer visual.





















II

Não foi capaz de terminar, sequer começar, a autopsia. Estava tão perturbada com a imagem do defunto que também não pôde dormir. Passou a noite em claro, esperando que o amanhecer iluminasse suas idéias. Mas, na manhã seguinte, assim que voltou para o necrotério, e percebeu que o corpo não estava mais lá, entrou em pânico.
Saiu pelos corredores gritando e praguejando aos quatro quantos do mundo. Perguntando para o ar quem havia tirando seu amado de lá. E obteve uma resposta seca e comercial do diretor do hospital “houve uma pequena confusão nos papeis do falecido, não se sabe como ou onde, mas trocaram sua ficha com a de outro, sendo este estava em outra instituição, portanto, a troca foi feita e agora tudo corre bem”.

De certo modo, ela ficou feliz com a resposta. Aquele morto era tão enigmático que cedo ou tarde iria causar-lhe problemas externos, ou internos. Voltou á rotina, com todos os
Bisturis e
Cadáveres e
Órgãos e
Fichas e
Pacientes e
Recibos e
Doutores e
Alunos e
Parentes inconsoláveis e
A morte e
(Essa sim, sempre por perto)
E...





















Faltava algo...

III

Mesmo com todos os calmantes e antidepressivos, ela não conseguia se concentrar. O trabalho se tornou quase tão destrutivo quanto a lembrança do morto. A rotina entrava junto com os raios de sol pela janela, despertava o despertador e circulava ao seu redor durante todo o dia. E lhe doíam todas as fibras do coração. E lhe doíam as pessoas, com suas usualidades e casualidades. E a vida lhe doía.

Estava tão transtornada com o encontro com aquele anjo em decomposição que a vida não merecia ser vivida se não ao lado dele.
Na mesma noite, se dirigiu quase que como uma sonâmbula, ao cemitério. E desenterrou todas as covas que pode. Passou as mãos empapadas de sangue e barro pelos olhos, para se confirmar que não estava sonhando, e não estava. Ás quatro da manhã, após uma busca frenética que transformou o cemitério em diversos buracos gigantes com gigantes trincheiras de terra fofa, ela havia encontrado seu amado.
Deitou-se ao seu lado no caixão apertado e untado com os líquidos verdes e nauseabundos que o corpo dele expelia, posicionou a cabeça em seu ombro nu, e dormiu. Sonhou com a estreiteza de sua vida, de seu corpo, de sua beleza, e de sua morte comparadas ás daquele corpo. E todos os homens, e todas as mulheres, e até mesmo Deus seria incapaz de emitir uma luminosidade tão viva como ele. E ela daria sua vida, em troca de viver a morte ao lado dele. Pois até mesmo a morte, só seria digna, se fosse com ele.

Wednesday, November 21, 2007

Thursday, November 15, 2007

A Lombriga de Luíza




Daquele tipo de amor que só reservamos para a pessoa certa. Entre todas as faces tristes e pintadas nas ruas só uma será digna de recebê-lo.
Entre todos os olhos murchos e frios, entre todas as vísceras possíveis, foi justo nas de Luiza que se plantou a semente maldita.
A semente concebida a partir do mau hábito de comer terra. O croque-croque dos grãozinhos moendo-se entre os dentes e o gosto de pedra preso na língua sempre lhe foram irresistíveis. Não que não a tivessem alertado desde o principio sobre as conseqüências de tal paladar. Mas conseqüências só são conseqüências quando se concretizam.
Concretizou-se uma lombriguinha em suas tripas. E na lombriga de suas tripas, concretizou-se um coração. Um coração humano em um corpo de verme.
Alimentando-se das decomposições e nadando nos azedos sulcos gástricos de sua portadora, veio-lhe a idéia torta e fatal, de que aquele corpo vermelho ao avesso, era na verdade, sua mãe. E amou aquelas estranhas entranhas mais do que a si própria.
Devorava-lhe pequeníssimos pedaçinhos das vísceras, abria túneis para as partes até então desconhecidas daquele gigantesco palácio de carne viva e pulsante. Até que, no meio daquele emaranhado de tripas, descobriu um coração. Um frenético coração gelatinoso e elástico costurado com veias verde azuladas. O coração de sua mãe: Luiza.
E novamente uma torta idéia aflora em seu minúsculo cérebro. Estaria o tão almejado amor de sua genitora escondido no fundo de seu órgão mais pulsante?
Mas uma forte sucção sugou-a para baixo, revolvendo o caminho que havia feito antes, revolvendo entre as fendas abertas por ela no estomago de Luiza, revolvendo para as feridas ainda sangrentas no tecido do intestino, e foi sugada através de um feixe de luz.
Quando se deu por si, estava flutuando em uma água transparente e inodora, muito diferentes dos líquidos gosmentos e nauseabundos aos quais estava acostumada. E numa distancia inatingível para ela, estava sua amada mãe, olhando-a com uma cara asquerosa.
E foi olhando-a com todo o desprezo que se pode oferecer á um verme, Luiza puxou a cordinha da descarga.

Friday, November 02, 2007

amanhã?



os dias vão me ignorar...

ontem.


eles sufocaram toda a minha vitalidade.
há um ano atrás eu sentia a brisa da vida bater no meu rosto.
hoje, eu sou um cadaver ambulante.
uma me afogou nas gotas de suor de suas folhas sufites e não permitiu que eu vivesse.
outra cortou todas as correntes que pudessem me puxar para fora.
e a última arrancou meu coração enfrente de todos os outros.
elas acabaram comigo, Roberto!

quando?


Thursday, November 01, 2007

o que é a vida, não é mesmo, minha zenti?



Eu não quero
Porém
Um impulso
Irresistível
Faz-me arrancar
O pulso
Continuo
Que insiste
Em
Perturbar.
Uma
Lamina limpa
Uma
Ponta afiada
Que
Risque a fina pele
Envolta
Do relevo
Pulsante.
Faça
A verde-veia
Frenética
Da vida
Parar
Minha existência
Fodida
Se esvaziar
Junto
Com o sangue
Explodido
Retido
De reter.
Agora sim
Só me
Resta
Morrer...