Sunday, February 22, 2009

Histórico Escolar.



Quando eu era criança, deitava no chão gelado da escolinha e olhava para o céu. As outras crianças passavam por mim e me chutavam. Na segunda série, a professora me perguntou por que eu sempre passava o recreio inteiro sozinha. Eu respondi que era porque ninguém queria ficar comigo. Na quarta, a professora disse que minhas calças pareciam de homem. Na sexta série, o professor de educação física me mandou parar de falar com as paredes, na frente a toda a sala de aula. No segundo colegial, a vice-diretora ameaçou me expulsar da escola se visse eu abraçada com mais uma menina. E agora, a faculdade começa a contar suas histórias.

Tuesday, February 10, 2009

Humanidade.



O homem que queria conhecer o outro lado da rua construiu uma escada de ilusões e esperanças. Um muro milimetricamente planejado cortava verticalmente a rua e era grande o suficiente para impedir a visão de curiosos de ambos os lados. Entretanto, era inevitável não ouvir os rumores sobre o motivo e a mando de quem havia se construído tal fronteira. Enquanto uns diziam, com acreditável convicção, que por detrás dos tijolos e do concreto havia uma raça de humanóides inteligentes que, visando perpetuar tal característica comum apenas á eles, construiu o muro segregando os habitantes vizinhos. Outros, mais céticos, espalhavam pelas mentes desavisadas, que tal construção fora feita a mando do prefeito que o construiu em homenagem a todos os muros do Planeta e pretendia batizá-lo com o nome da primeira dama, morta em um acidente em que seu carro colidiu violentamente contra um muro. Entretanto, tal informação jamais pode ser confirmada. O prefeito nunca atendia ao telefone, pois estava eternamente de férias. Havia também os incrédulos em tudo menos em suas próprias crenças. Estes passavam ao lado do muro com indiferença e outorgavam á Deus a construção e os motivos de tal fronteira.
O Homem, fascinado com a magnitude e a perfeição vertical, coletou todas as dúvidas e anseios dos morados locais e, amarrando-as em tábuas confeccionadas por suas próprias mãos, encostou sua escada de existências entre os tijolos. Conferiu se estava devidamente firme e pôs-se a subir o primeiro degrau, carregando consigo o peso da humanidade. De degrau em degrau, aprendeu a fazer o fogo, a manusear pincéis, a escrever e compartilhar suas palavras. Passou a ter família, cachorro, dinheiro. Aprendeu a beber nos domingos e ir ao banco nas segundas-feiras. Quando clonou e eternizou seus filhos, revestiu seu corpo de circuitos e fibra óptica, percebeu que após construir tantos degraus havia se esquecido do último e que, apesar de todas as suas descobertas, jamais encontraria uma resposta definitiva para suas perguntas. O último degrau o levaria, sem muito esforço, para o fim do muro. Na falta dele, o Homem fez o que sempre pôde fazer: deu um salto alucinadamente arriscado rumo ao nada. E, agarrando-se cambaleante ao muro, percebeu que havia derrubado sua escada no impulso para saltar. Pendurado pelas duas mãos olhou para baixo e, ainda que não a visse mais, ouviu o estrondoso som que a escada fez ao chegar ao chão. Com um salto experiente, o Homem equilibrou-se em cima do muro e, perplexo com a dimensão de sua busca pelo indefinido, atirou-se rumo ao abismo desconhecido.

Tuesday, February 03, 2009

Ludmila


Ludmila acordou com a sirene fanha do despertador. Abriu os olhos e esperou até que as imagens embaçadas em sua vista formassem os fios de luz do amanhecer sob sua janela. Suas mãos precoces tatearam o lençol da cama em busca de algum pedaço de chocolate esquecido na noite passada.

Levantou, vestiu-se com as roupas largas e desbotadas que herdou de sua mãe e, ainda desejosa de açúcar, foi até a cozinha preparar um leite morno para começar seu dia quente. O calor escorria dos fios de cabelo e contornava sua face, formava gotículas salgadas em seu nariz e manchas suaves em sua camiseta. As ruas lotadas, o asfalto fervendo sob o calor de 40º C. Cada passo era meticulosamente calculado, cada espaço era milimetricamente delimitado ainda que todos insistissem em esbarrar em seu ombro. Ás 09h30minh entrava no escritório. Seu relógio marcava 9h29min, engolindo a saliva de ansiedade dos segundos que restavam, Ludmila empurrou, discretamente, a porta enferrujada cujo grunhido ecoou por toda a sala de espera e despertou olhares alheios em sua direção. Na sua mesa, havia fotos de gatos, pombos, ratos e cães, ainda que estes não lhe pertencessem, ela sentia um prazer sincero em alimentá-los nas esquinas sujas da cidade. O ventilador barulhento no teto, além de não ventilar seu suor, a desconcentrava. O tic-tac insistente do relógio que estava, propositalmente, atrasado, lhe deixava nervosa com os papeis acumulados. Ás 18h o expediente terminava. Ás 18h15min era a hora de esperar os gatos saírem de seus esconderijos na praça. Casais de namorados com os braços e lábios entrelaçados passavam e sentavam-se nos bancos ao redor de Ludmila. Os olhares, os gestos, os abraços, os beijos... Ainda que se sentisse melhor sozinha, de vez enquanto, bem de vez enquanto, Ludmila não se importaria em dividir seu coração ou sua cama com alguém. Tanto que, quando ela sentia-se assustada com a escuridão de seu quarto, sempre encontrava alguém que preenchesse, temporariamente, a sua solidão. Mas, em todas às vezes, ela escolhia se isolar. Se isolar, de preferência, no canto esquerdo, do lado da parede, em sua cama. Ludmila enterrava-se entre os lençóis, esticava as pernas, encolhia os braços e abraçava seus sonhos de felicidade durante ás 6 horas que lhe eram permitidas para recarregar seu estoque de tristezas diárias.