Friday, October 16, 2009

O Outro Lado do Paraíso




I.
Aquela menina mirrada, pálida, não era muito sociável mesmo quando sua mãe ainda era viva.

A casa era pequena. Resumia-se a um quartinho minúsculo, uma cozinha de paredes verdes e o banheiro.

O imenso zelo que sua mãe lhe destinava tornou-as possuidoras de uma auto-suficiência recíproca. Não precisavam de nada que não houvesse dentro de sua pequenina casa.

Quando a mãe morreu, a menina dispensou o enterro. Repousou o corpo de sua amada mãe na cama e deitou-se nos anos desperdiçados que vieram em seguida. As primaveras, os invernos eram assistidos pela janela de madeira vermelha. O olhar inerte da menina acompanhava o dia por um feixe de luz empoeirado que se desprendia da janela e circulava todo o quarto. Todos os dias. Anos de sonolência. Sua morbidez voluntária só foi despertada quando o vitral da janela trincou com o frio seco das manhãs de segunda-feira. Os estilhaços, como se guiados por uma divindade, atingiram-na o rosto e um fio de sangue escorreu, delineando seus traços e manchando de sangue o lençol desbotado da cama. Levantou-se.
Olhou-se no espelho. Seu corpo havia crescido e seu rosto esticado. Sua total inabilidade com os seios que surgiram brandamente entre suas costelas a constrangia. Pêlos.

Enquanto distraia-se com suas mudanças, lembrou-se do motivo que a fez renegar seus anos de infância. A beleza que sua mãe ainda conservara nos primeiros meses de morte fora levada com os anos. A maciez de seu rosto foi lentamente evaporada pelo ar gasto e abafado do quarto. Mas os cabelos castanhos continuaram crescendo. Contrapondo-se aos cabelos negros da filha de olhos igualmente sombrios. Olhos que sabiam o segredo de todos os detalhes do que quer que fosse, mas que se cerraram para a vida. A casa escura e mofada coincidia com sua aparência e lhe tornava invisível ao caminhar por entre os cômodos. O quarto dava para a sala, que dava para a cozinha, que dava para o banheiro. Ao avistar a porta que separava a cozinha do resto do mundo, uma súbita curiosidade abateu-lhe.

Durante todos esses anos, ela havia se esquecido que existia um mundo fora de seu mundo. E o mundo lá fora também havia se esquecido da existência daquela menina, assim que ela fechou a porta de sua casa de paredes verdes, após a morte de sua mãe.
O desconhecimento era tamanho que quando já desperta, ao abrir o feixe que trancava a porta e permitir que os raios de sol delineassem seu rosto precoce, a rua inteira petrificou-se. De uma esquina a outra, todos os olhares voltaram-se para ela e, como em coro, o espanto que sua aparição causara retratou-se nas faces douradas da vizinhança. E a contagiara. Por um instante vacilou. Quase se trancou novamente dentro de casa. No instante seguinte, contudo, o espantou transformou-se em curiosidade.

A garota repousou seu pé nu na calçada suja e, vagarosamente, como se evitando chamar a atenção, caminhou até a esquina. Sua casa encontrava-se exatamente no meio do quarteirão. Não era uma rua extensa, mas sua caminhada durou tempo suficiente para que os boatos começassem a se espalhar pela vizinhança. Seu vestido branco chocava-se contra o vento insistente. Seus passos delicados, quase flutuados, lhe davam uma aura divina. Como um anjo, uma santa ou um demônio. Ou, até mesmo, uma criatura não-identificada, cuja aparição inédita causava tremor até no místico mais experiente.

Ao chegar à esquina, entre tantas atrações, a garota interessou-se justamente por uma pedrinha solta na rua de terra batida. Agachou-se e segurou-a. Contemplou seus detalhes. Logo em seguida, saciada sua admiração impulsiva, retornou a pedra ao seu lugar de origem. A essa altura, os moradores já se aproximavam. Ela, assustada com o cerco, voltou, com passos apressados, para sua casa. Trancou a porta.

Acalmados os ânimos, as pessoas voltaram a seus bancos, janelas e calçadas para logo em seguida apreciarem um fato que mudaria a maneira como encararam aquela garota.

Um menino cego e magro, constantemente atormentado pelas outras crianças por conta de sua deficiência, corria com o rosto empapado de sangue. Atrás dele, pedradas. Em seus passos bruscos, não percebeu o degrau entre a rua e uma casa. Tropeçou. A pele de seus joelhos ralou-se no atrito com a calçada. As pedras não cessaram. Uma criança segurou a pedra que a garota havia tocado e, brutalmente, atingiu a cabeça do garoto. O sangue jorrou e, em poucos segundos, todo o seu rosto estava coberto com uma mascara liquida e vermelha. O menino abriu os olhos. Enxergava. Olhou atentamente para o rosto de cada criança. E dirigiu-se a delegacia para dar queixa. O grupo de crianças perguntara-lhe como iria descrever seus agressores. O menino virou-se e descreveu o rosto do garoto que lhe havia dirigido a pergunta.

Os vizinhos, alarmados com tal cena, logo perceberam que haviam presenciado milagre incumbido à garota daquela casa verde. Tumulto.



II.
Em regiões demasiado provincianas, as superstições afagam as mentes cujo mistério se instala. A garota não sabia disso. Sequer saberia que a pedra, ao receber o toque macio de suas mãos finas, tornar-se-ia objeto de exaustivo culto.

As anciãs, conhecidas pela cidadezinha como infinitamente sabias e incapazes de cometer previsões falhas, ao avistarem a multidão que se aglomerava ferozmente em frente à casa da garota, se dirigiram até o local e, discretamente, previram que “a sujeira que a sola de seu sapato deixou sobre essa calçada, logo se converterá em sangue”. Foram ignoradas.

O tumulto era tamanho que mulheres grávidas solteiras caiam ao chão da porta verde e entravam em um frenesi profundo. Como se, ao respirarem o mesmo ar, ao tocarem na mesma maçaneta que a garota tocara a poucas horas, estariam curadas do mal que crescia dentro de seu ventre. Os camponeses ajoelhavam-se em frente à janela e rogavam por chuva. Os comerciantes faziam promessas de caridade caso adquirissem empréstimos financeiros. Outros pediam por emprego. E alguns, ainda, rezavam por uma esposa.

Os ânimos exaltados, os gemidos de transe e as cantorias ecoavam pela casa, despertando a atenção da garota que, após o choque inicial, voltou a deitar-se na cama. Levantou-se. Dirigiu-se até a porta. A cada passo que dava em direção da entrada, os gritos aumentavam. Ao tocar a maçaneta, a semelhança e tonalidade das vozes deram-lhes um som de grunhido, como um coro de gemidos e implorações cuja insistência, que a principio devia ser bela, tornara-se asquerosa. Porém, a bondade da garota transbordava sobre seu nojo.
Abriu a porta. Homens, mulheres, crianças, idosos caíram sobre seus pés antes que ela pudesse passar. As lágrimas sinceras que escorriam pelo rosto dos devotos tocaram seu coração. Afagou suavemente os rostos próximos de sua mão. As letras macias que escaparam da boca da garota se propagaram pelos ouvidos próximos e, de maneira gradual, converteram-se em palavras graciosas. “Em que posso ajudá-los?”. As faces se iluminaram.

Como é típico da humanidade, os pedidos jorraram comodamente das bocas dos crédulos e inundaram os ouvidos da garota. Ela, que desconhecia seu próprio milagre, pasmava com as impossíveis suplicavas que lhe eram direcionadas. Argumentava que não era santa. Dormira por muitos anos e, agora, ignorava os problemas do mundo. Os devotos, incapazes de aceitar que o milagre que viram pudesse ser desmentido, insistiram que a garota tomasse suas dores. A violência das exigências aumentava com suas negações.

A desordem tomava dimensões gigantescas. Uma das crianças que, a princípio, se jogou aos seus pés, décadas depois, continuaria afirmando que, aproximadamente, oito mil pessoas aglomeraram-se em torno da casa da garota. E ela, apavorada com o assédio agressivo que os devotos empregavam, pedia a eles que acalmassem os ânimos. Que se acalmassem para poderem negociar em paz. Ouvidas essas palavras, uma das devotas cuspiu sua proposta. Um teste para provar a santidade da garota. Que aceitou.



III.
A sugestão da senhora veio a calhar. A garota apenas seria obrigada a suportar a companhia de uma adolescente problemática que, de acordo com a devota, coincidentemente a mãe da menina, fugira do convento e se recusara a rezar nas missas daquela pequena cidadezinha. Se a garota fosse capaz de modificar o comportamento da menina, então estaria provada sua irrefutável santidade. Se não fosse, os devotos a deixariam em paz, como ela tanto desejava. A multidão acalmou-se, cedeu à garota duas semanas de teste. Durante esse período não a incomodariam.

Ás 19h em ponto, a devota e sua filha bateram à porta verde. A garota, enxugando-se de seu primeiro banho em anos, as atendeu timidamente e ofereceu-lhes café. A devota, aterrorizada com tal ultraje, lhe explicou que não se oferecia café após ás 16h naquela cidade. Era pecado. E a perdoaria unicamente por sua inocência perante os males do mundo. A garota, sem compreender com exatidão os motivos da recusa, pediu-lhes que se sentassem.

Em sua sala empoeirada, havia apenas uma janela, um tapete e a antiga poltrona cujo desbotamento dos anos sem uso impedia que em suas linhas apagadas se reconhecessem a maciez do couro. A devota acomodou-se prontamente e sua filha, discretamente, sentou-se no ombro da poltrona. A mãe, incomodada com o silêncio que emanava da falta de intimidade entre elas, pôs-se a desaguar as incontáveis desonras pelas quais sua filha a fizera passar. A garota, que até então ignorara a existência da menina, abismada com a dramaticidade que a mãe empregava ao falar de sua própria filha, voltou seu olhar a menina. Os cabelos compridos e castanhos, o corpo esguio, as sardas que realçavam seu olhar denso, atingiram a garota de modo brutal. Como era possível que alguém com uma aura tão angelical pudesse ter incendiado a casa dos avôs no ultimo domingo de páscoa, como dissera a mãe? Chocou-se com a intensidade dos fatos contados. Seu espanto era tamanho que interrompeu a devota e perguntou diretamente a menina se tudo aquilo era verdade. A menina balançou a cabeça em sinal positivo. A garota perguntou por que ela fizera tudo aquilo. A menina calou-se. E a devota pôs-se a esbofetear sem trégua a menina. “Eu lhe digo por quê! Essa menina é um demônio! Quem dera se estivesse possuída, já chamei os melhores exorcistas, nenhum conseguiu mudar seu comportamento. Menina estúpida!” e a crescente violência dos golpes arrebentou a sobrancelha da menina. As gotículas de sangue que escorreram assustaram a garota que, rapidamente, lhe deu um lenço úmido para enxugá-las. A mãe, pasmada com sua própria agressividade, pediu desculpas enquanto beijava a ferida de sua filha. Pediu a garota para não comentar com a vizinhança sobre aquela cena. Seria o fim da inabalável reputação da devota. A garota concordou e voltou-se novamente a menina. Surpreendeu-se com a passividade com a qual ela encarara a cena. Nenhuma lágrima, nenhum grito ou gemido de dor. Ela pareceria petrificada, se seus olhos não estivessem em constante vislumbre pelos detalhes da sala. A garota perguntou-lhe seu nome. “Laila.” A mãe, impressionada com a facilidade com a qual a garota arrancou-lhe, sem violência, as palavras, anunciou sua retirada, confiante na santidade da garota. A garota abriu a porta e, educadamente, agradeceu a visita. Voltou à sala.


IV.
Incapaz de acreditar que seria obrigada a passar a noite com uma total desconhecida que aterrorizava até seus entes queridos, a garota fechou os olhos e suspirou profundamente. “E o seu?”. A garota virou-se e, encabulada, respondeu que se chamava Alicia. “Me oferece uma xícara de café, Alicia?”. Confusa com a contradição entre tal pedido e o “pecado” ao qual a devota havia se referido, dirigiu-se a cozinha. Laila a seguiu. “Como agüentou ficar trancada nessa casa mofada por tanto tempo?”, perguntou maliciosamente a menina. “Eu não me lembro. Ás vezes até esqueço de que eu estive viva por todos aqueles anos.” E cerrada sua boca, o silencio pairou novamente sobre a cozinha.

Alicia não estava acostumada com as palavras. Passara tanto tempo deitada que se esquecera de questões como cordialidade, educação ou moral. Lembrava-se que sua mãe insistia que cordialidade, educação e moral não passavam de facetas desnecessárias quando se tem consideração pelo próximo. A garota, ainda que louvasse os ensinamentos de sua mãe, não queria ter consideração pelo próximo. Alicia gostaria de ficar sozinha. Eternamente sozinha. Como estivera há pouco tempo. Não desejava o mal para a humanidade, apenas gostaria que a humanidade esquecesse que algum dia ela havia pisado no planeta Terra.

Laila não se esquecera do café e tomou a xícara da mão de Alicia. “Mas que lentidão”, e adicionou dois cubos de açúcar. Alicia, um tanto irritada com o comportamento da menina, voltou-se a sala. Sentou-se na poltrona em que até pouco tempo a devota estivera sentada. E, ao lembrar-se de tudo o que acontecera naquele infeliz dia em que decidiu levantar-se, sua memória tornou-se embaçada.

Por um momento, ela se viu perdida. Desorientada. Correu para o quarto. Viu o cadáver mumificado de sua mãe. Pôs-se a chorar desesperadamente. Alicia sentia que todas as dores do mundo caíram sobre ela. Se sua mãe pudesse ouvi-la. Se pudesse dizer-lhe o que fazer naquele momento. Mas sua mãe não podia.

Laila avistou a porta aberta e, sem constrangimento algum, entrou despreocupadamente quarto adentro. Com um ar abatido, ela perguntou a garota o que estava acontecendo. “É tão horrível assim respirar o mesmo ar que eu?”. Antes que pudesse terminar de pronunciar suas palavras dramáticas, Laila se deu conta de que, embaixo do mesmo teto em que interpretava para Alicia, um cadáver também compartilhava a cena. Tentou gritar. Mas o turbilhão de espanto que se apossou de seu corpo só pode ser percebido pelo choque em seus olhos. Calou-se.

Alicia, desabituada com os receios do mundo, perguntou a Laila se estava tudo bem. Não obteve resposta e, seguindo a direção para onde se voltavam os olhos da menina, percebeu que a presença do cadáver de sua mãe causara tal reação.

Alicia compreendeu o estado da menina. E, guiando-a pela cintura, levou-a de volta a sala. Acomodou Laila na poltrona. Perguntou se ela queria um copo d’água, mas lembrou-se de que o café ainda estava quente na cozinha. Alicia, constrangida com a palidez da menina, acariciou seu rosto. Encostou, delicadamente, na ferida que a mãe abrira em Laila. Perguntou se doía. Laila, com um profundo suspiro de alivio, moveu a cabeça em sinal negativo. Indagou, timidamente, à Alicia porque ela matinha um cadáver em sua cama. A garota, por consideração a Laila, pôs-se a dar os detalhes, em monossílabos, de sua vida adormecida. Contou-lhe sobre a morte de sua mãe e o total desinteresse pela existência que tomou conta dela após esse fato.

Quanto mais a noite caia, mais as duas se entretinham com seus desastres pessoais. Laila contou sua história, seus motivos. Disse que, por mais que se controlasse, não conseguia não fazer o que almejava fazer. Suas vontades dominavam o seu ser e ela era incapaz de impedi-las. Se estivesse de fato possuída, com certeza, seus desejos seriam os demônios. Riram por horas seguidas.

Sem que percebessem, a afinidade entre as garotas deu ao quarto uma aura intima. Como se todos os móveis, a cama, os lençóis e a tranca da janela aguardassem que o infalível acontecesse. Após uma noite agitada, o sono as abateu. A cama era pequena, estreita e só acomodara a mãe e Alicia por tanto tempo pela total inatividade física de ambas. Mas agora, com a animação de Alicia, tornara-se difícil compartilhar o mesmo colchão sem encostar-se ao corpo de Laila. Laila não se incomodava. Pelo contrário. O silêncio que retornara ao quarto aconchegava seus corpos. As inevitáveis carícias começaram ás 3h da manhã e duraram até o primeiro raio de sol atravessar o feixe de madeira no qual Alicia olhara toda a sua vida. Timidamente, Laila arriscara o primeiro beijo. O toque dos lábios quentes, as mãos macias delineando mutua e inexperientemente as brandas curvas por debaixo das roupas. E as roupas, incapazes de conter os ofegantes desejos que brandiam da pele daquelas duas garotas, esquivavam-se sem grandes dificuldades. Da mesma maneira que as horas também se esquivaram entre beijos e suspiros. A escuridão noturna diluiu-se gradativamente nos insistentes raios de sol. E ao acordarem, com a manhã encostada em seus corpos, a luz iluminou a ternura e o conforto despertos em suas almas.



V.
A gulosa ansiedade da mãe a impediu de aguardar até à tarde para rever a filha. Ás 9h, a devota já se postava em frente à porta de madeira verde e, com seu incessante bater de palmas, as garotas deslizaram de seus afagos matinais e apressaram-se em atendê-la.

A felicidade que irradiava do rosto de Laila surpreendeu a devota. Alicia a convidou a se sentar na mesma poltrona de couro da noite anterior. Laila, cuja alegria exalava em frases acaloradas, perguntou à mãe como ela estava. Os detalhes de seu fim de noite, seus sonhos, se dormiu bem, se tomou o café da manhã. E a mãe, convicta da cura de sua filha, agradeceu de joelhos á Alicia. “Curada! Finalmente curada!” gritava a devota pelas ruas da vizinhança, atiçando aos crédulos que ainda não haviam realizado seus desejos.

Laila se despediu de Alicia com muito amor e pouco tempo, enquanto sua mãe a puxava para comprovar sua prodigiosa mudança de comportamento frente aos curiosos olhos da cercania. Alicia, com um inapagável sorriso de contentamento, deu um discreto beijo nos lábios de Laila. A devota mostrou-se um tanto incomodada, mas, por gratidão, evitou manifestar-se sobre o gesto.

Sedenta de milagres, a multidão do dia anterior se aglomerara novamente. Alicia, infinitamente venturosa, pôs-se a atender a todos os pedidos que lhe eram direcionados. Ela curou enfermos, indivíduos cuja insustentável sabedoria os enlouquecera. Deu força a pernas paraliticas. Como de praxe, fez com que crianças cegas voltassem a admirar o mundo ao seu redor com seus próprios olhos. Ressuscitou idosos à beira da morte. E, ao fim do dia, levitou entre as casas da vizinhança para o deleite visual do público presente.

Seu cansaço a surpreendia. Pediu, atenciosamente, que os devotos remanescentes voltassem no dia seguinte que ela atenderia, com prazer, aos seus pedidos. Perante os indefinidos murmúrios de descontentamento, Alicia fechou a porta.

Dirigiu-se ao quarto e deitou-se, desajeitadamente, em sua pequena cama. Suas mãos precoces tatearam o colchão em busca de seu travesseiro e, entre uma dobra e outra Alicia descobriu Laila, com um sorriso provocante, deitada entre os lençóis. Restabeleceu suas forças.



VI.
As fugas de Laila tornaram-se constantes. Todos os dias, ao pôr-do-sol, após Alicia finalizar seus milagres diários, as duas garotas se encontravam e dividiam o restante da noite.

A mãe de Laila, porém, não via com bons olhos o sumiço noturno de sua filha. Ainda que evitasse pensar dessa maneira, sua desconfiança sobressaia à gratidão por Alicia e as suspeitas alfinetavam sua consciência com medos infindáveis. Completado um mês de escapulidas, a devota decidiu agir. E agiu da única forma que soubera agir.

A única forma como sempre agiu. Sem perguntar a Laila seu motivo, trancafiou-a no quarto e deixou a filha a pão e água. No dia seguinte, Laila seria levada a um convento para se redimir de “seu relacionamento pecaminoso”. Durante as primeiras horas, a menina foi incapaz de desenrolar-se de sua magoa.

Seu choro aflito e intenso ecoava pelas casas e surrava os ouvidos e os corações da vizinhança. Laila, conformada com a intolerância da mãe, domou suas dores e as transformou na arquitetura de um plano de fuga de seu calabouço materno. Após uma noite inteira de tentativas, conseguiu abrir a janela e pular rumo ao amor de sua vida.

Entretanto, como se o destino lhe tivesse pregado uma triste peça, ao atravessar a névoa macia exalada pelas estrelas nas madrugadas de frio, Laila esbarrou em dois homens cambaleantes. E um grito de dor rompeu a madrugada.



VII.

Alicia aguardou ansiosamente por Laila. Durante um mês sua vida de duas décadas havia tomado forma para, em míseros três dias, desintegrar-se novamente em um marasmo sem sentido.
Mas a garota não desistiu, ainda que sua aflição espremesse sistematicamente a qualidade de seus milagres. Alicia havia ouvido inúmeras criticas naquelas 72 horas sem Laila.

A população, cobiçosa de desejos, era incapaz de compreender quão despedaçada estava sua alma. As vaias tornaram-se constantes. E a tristeza de Alicia eternizava-se nas quietas noites daquela cidadezinha pacata.

Na terceira noite, entretanto, a cidadezinha pacata levantou-se de seu sono e voltou-se às buscas do corpo de Laila. A devota, seguida por uma multidão de descontentes, bateu na porta de Alicia. Ela, desembaraçando-se das lágrimas noturnas, dedicou-se à pressa em atendê-los. E, antes que terminasse de destrancar sua porta verde, percebeu, pelos olhos furiosos da multidão que se espremia na rua, que seu receio de fato efetivara-se.

Alicia, chocada com a notícia de que jamais voltaria ver Laila, petrificou-se em frente à porta. A multidão adentrou bruscamente em sua casa e, levados pela ira do momento, encontraram no corpo de sua mãe o mesmo corpo que procuravam. Alicia era incapaz de defender-se.

Sua imobilidade mórbida, que por tanto tempo a preservara dos perigos do mundo, retornara. Assistia a cena com lágrimas nos olhos, mas não conseguia sequer gesticular.

Na busca por mais detalhes do crime, encontraram, entre os lençóis desbotados da cama, uma mancha de sangue que, há poucos meses, fora o estopim do despertar de Alicia. E que agora se tornara sua sentença de morte. A acusação de homicídio e o envolvimento afetivo com Laila dissiparam a piedade da cidade.

Alicia iria para a forca em praça publica na tarde seguinte, antes do pôr-do-sol. Serviria de espetáculo ao tédio da multidão e exemplo aos dissidentes que tomassem o mesmo rumo que ela. Alicia não conseguia conter as lágrimas ou defender-se das incriminações que lhe faziam na prisão. A dor que tomara sua alma não permitia que fizesse o que quer que fosse, senão chorar.

Aguardou, com uma ansiedade sufocante, suas últimas horas passarem para que, finalmente, pudesse apreciar mais uma vez o sol poente. Ás 18h, o sol recostava-se de sua jornada e dava, aos poucos, lugar a uma escuridão intensa. A corda áspera laçou o pescoço de Alicia.

Os olhos interessados da multidão brilhavam ao reflexo da fraca luz que restara do dia. Idosos, mulheres, crianças, comerciantes, camponeses amontoavam-se defronte a forca da garota que, há pouco tempo, lhes curara suas enfermidades. E quando o corpo de Alicia pôs-se a flutuar no ar, sustentando-se apenas pela corda, a platéia aplaudiu de pé o espetáculo e voltou-se para seus lares, onde poderiam esconder-se de suas próprias consciências.

No decorrer da madrugada, entretanto, o corpo de Alicia passou a emanar uma tímida claridade. Sua pele brilhava sob o orvalho e iluminava a noite sombria e silenciosa.

Os moradores, despertos com a alvorada antecipada, saíram de suas casas e se dirigiram ao local onde estava o corpo de Alicia. A luz calorosa os confortava como o sol conforta os corpos frios nas manhãs de inverno.

Sem que ninguém pronunciasse palavra alguma, a multidão que se aglomerara aos pés da garota percebera quão terrível foi seu pecado.
Na madrugada gelada, os corpos inclinaram-se rumo ao chão. A luz iluminou as cabeças penduradas e os corações dilacerados pelo remorso. Como um grito silencioso, que ecoasse pela alma dos agraciados por Alicia, a multidão enfim compreendeu que o mais inexplicável dos milagres não está em levitações ou na cura das mais mórbidas enfermidades. Mas sim na cócega discreta escondida nos sentimentos daqueles que compreendem o quão indescritível é a magnitude da palavra “amor”.


PS - Essa estória foi originalmente publicada em ABC Les.
PPS - Eu sei que estou meio ausente, mas, como puderam perceber, estou escrevendo histórias maiores, o que leva um pouquinho mais de tempo. :]