Sunday, May 01, 2011

Genealogia



E chovia muito naquele dia também. Assim que eu soube da morte dele, um vento frio atingiu meu rosto, chacoalhou as roupas no varal, as folhas das árvores no quintal e começou a chover. E desde então, não parou mais. E a sensação de impotência voltou. A minha filha também não parou mais de chorar. As mãos ensopadas de lágrimas, o lenço úmido. Sem consolação. E que consolação poderia haver? Ela perdeu um filho e uma sobrinha muito querida. No último mês eu perdi dois netos. E os perdi de maneira evitável. Eu podia ter evitado a morte deles. Mas o destino sempre nos prega peças desagradáveis. O tempo todo com peças desagradáveis. Foi verdadeiramente trabalhoso chegar ao funeral. Ele morreu muito jovem. Mas não sei se daria a minha vida em troca da dele. Nesse momento, talvez, sim. Mas mesmo tendo o triplo da idade, eu sinto que vivi muito menos do que os meus dois netinhos. E creio que as pessoas sentadas ao redor do caixão, algumas chorando, algumas de cabeça baixa, tristes, fingindo que se importam, mas na verdade só se resignando com o tempo lá fora, também pensam assim. Ninguém se importa de verdade. Se se importassem não teriam agido com tanta má fé, tanta falta de cuidado com eles. Isso de se importar depois de ter falado tão mal, de ter apunhalado pela frente e pelas costas pessoas sem opções e sem qualquer outra escolha, não existe. Não, não existe. Não me conformo com isso. E ainda vêm até aqui, dar os pêsames. Pouca vergonha e falta de cara de pau. Bom... Pelo menos deram os pêsames. Talvez, de fato, estejam arrependidas. Eu, no lugar delas, também estaria. Mas parece que já gastei todo o meu estoque de lágrimas nesse mês. E fica tão feio não chorar no enterro do próprio neto. O caixão descendo, as flores caindo. E ele finalmente desapareceu de nosso contato físico. E como estava acabado, não? A pele estava seca, como a de uma múmia. O rosto muito magro, os braços finos e as cicatrizes de brigas e tiros pelo corpo. Como isso foi acontecer, hein? Como tudo isso aconteceu? Parece que ontem mesmo ele corria pela casa, pequenininho, o macacão azul sujo de papinha. Sorrindo, assistindo televisão e esperando o pai vir buscá-lo para sair. O tempo passa rápido demais. Talvez se tivéssemos mais tempo para pensar nas nossas atitudes, nas nossas falas, tudo seria diferente. Teríamos mais controle sob a nossa própria vida. Minha filha não pára de chorar. E por mais que eu a abrace e tente animá-la, a dor não sai. Dê uma boa olhada, aí de cima, Murilo. Veja quanta gente sofrendo por você aqui embaixo. Por que foi se meter com as drogas? Sua vida era difícil, eu sei disso como ninguém. Mas a nossa também não era fácil. Não tinha por que dificultá-la ainda mais. Talvez seja castigo. Nós podíamos ter feito mais por você, mas naquela época não sabíamos que as coisas acabariam dessa forma. Será que foi o divórcio dos seus pais? Mas, tantos pais se divorciam por aí, e os filhos não mexem com drogas por causa disso. E a Luiza, então? A mãe distante. Só ficou sabendo que a filha se matou duas semanas depois do funeral. Não conseguíamos falar com ela. Se mudou de casa e não avisou ninguém. Nem a própria filha. E chorou tanto quando soube. Deu até pena. Deu pra ver, no fundo dos olhos vermelhos, que apesar dos pesares, apesar da distância, ela se importava, sim. Se importava muito. E a filha, talvez, nunca soube disso. Talvez a Luiza também não soubesse o quanto era querida por mim. Eu a vi nascer, vi meu filho abraçá-la com a ternura que eu o abracei quando ele nasceu. Eu a vi crescer, tímida e isolada de tudo e todos. Mas extremamente inteligente. Não creio que ela tenha enlouquecido de tanto estudar, como falaram as más línguas por aí. Alguém que é tão inteligente assim não faria umas coisas dessas só por que o cérebro não cabe mais na cabeça. Não dá, não faz sentido. E eu vi tudo isso, Luiza. Eu vi a vida de vocês dois. E agora a minha vida é uma extensão das memórias de vocês. Tal qual uma mala velha, desbotada por fora, cujo conteúdo interno resume-se a fotos e mais fotos e mais fotos. E eu abro essa mala a cada segundo, e busco, entre as centenas de fotos guardadas, as que justificariam o caminho que a nossa vida tomou. E não encontro nenhuma foto. Não encontro nenhuma solução. E eu não me esqueci de vocês. Eu ainda me lembro muito bem de vocês. O sol de domingo paira sob a minha cabeça como uma cruz de expectativas que tenho que carregar. E a carrego com um sorriso falso nos lábios. As pessoas me cumprimentam e o sorriso continua lá. E eu tento ser sincera e dizer que já passou, que está tudo bem. Mas não passou. Embora o enterro tenha sido há muitos meses atrás, os rostos dos meus netos continuam. Eu pareço ver esses rostos na multidão. Mas olho de novo e não é nenhum de vocês. Não é ninguém. Mesmo sabendo que vocês comprovadamente morreram. Mesmo tendo visto o corpo no caixão lacrado desaparecer de mim. Ainda assim, eu nutro a esperança de que vocês não morreram. Estão vivos e encenaram a própria morte para fugir de todos os problemas do mundo. Ou que ressuscitarão e sairão de seus caixões. E os cientistas se diriam surpresos com tal fato e não saberiam explicá-lo. Mas eu sei que isso tudo é besteira. E eu não consigo evitar. Parece que eu nem vivo mais. Vivo de passado, das lembranças de vocês. E o sábado a noite perpetua minha solidão. Não quero sair de casa, não insistam. O telefone nem toca mais. Está fora do gancho há semanas. Por que fizeram isso comigo? Por que Deus fez isso comigo? Entre tanta gente no mundo, por que eu? A casa escura, as luzes queimadas, a louça suja, nada mais me interessa. Os dias passaram tão lentamente, já estamos na metade do ano. Nem parece. O tempo passa de um jeito ou de outro. Eu não me importo mais. A TV exibe sua programação diária de chuviscos. Meu programa favorito nas madrugadas. Nada mais me importa, nada mais me assusta. Seu rosto refletido no espelho do banheiro, não me assusta mais, Murilo. Desista. Você continua tão magra, Luiza. Vá limpar o sangue dos braços, tem toalhas limpas no guarda-roupa. Enxugue as lágrimas e me traga um lenço para que eu possa enxugar as minhas também. Por que vocês estão na casa da sua velha avó nessa sexta-feira a noite? Vão para as festas, vão viver a vida e me deixem sozinha. Ninguém se importará. Nem eu mesma. Agora, é a hora de me virar por conta própria. É a hora de aceitar as minhas próprias decisões e caminhar, fechada, para o fim. A luz da TV ilumina meu caminho de destroços e cinzas. A luz da TV. O que será que está passando agora? A janela parece tão longe, tão alta daqui de baixo. Pensei que sentiria muita dor, no começo, mas o tédio e o remorso predominam até na hora da morte. Acho que a eternidade me condenará pelos meus pecados, o que você acha, Murilo? Talvez nada tenha valido a pena, desde o começo.