Thursday, October 15, 2015

Renascimento




Desde criança, a serra me atraiu. Talvez uma força estivesse me guiando até você, desde criança, desde o seu nascimento. Você, que habita esse castelo, murado de encruzilhadas e becos, cercado de inimigos, me chama da sua torre igual a uma princesa. Cavalgo através das plantações e do calor, por quilômetros e quilômetros, por dias e dias cheios de nada até você. E sei que, ainda assim, me mantenho distante quando nos alcançamos. Desculpe essa falha, é que há áreas no meu coração inacessíveis até para mim. Sua luz incandescente iluminou o meu reino de escuridão. Sua pirotecnia tem entretido minhas horas. Sua mágica é constante e inédita. Você, que tem escalado esses morros e caído deles há tanto tempo. Você, que tem montanhas escondendo o mal que te fizeram. Talvez não perceba se isso é um prefácio ou um epitáfio. Sua pele translúcida, seus olhos profundos e todas as cicatrizes por dentro e por fora do seu corpo. Você é um lindo retrato feito acidentalmente pelos pintores do seu reino. Acidentalmente unidas por algo que parece predestinado. Ainda que o mundo esteja acabando e que os limites do nosso amor estejam desabando, ainda com todos os perigos que apenas um conto de fadas poderia ter, eu caminharei até você nas horas vagas e pensarei em você nas horas atarefadas. Me espere em sua torre e eu libertarei você. Me espere em sua torre e também viveremos felizes para sempre.

Friday, July 03, 2015

Bastardos



Eu, como bastarda, cresci igual a um animal. As pessoas não cuidam de animais, pois sabem que o esforço não vale a pena, e estão certas. Eu cresci na imundice, na sujeira e no isolamento. Era difícil de falar, era difícil de entender o que me falavam e sempre fui um grande exemplo de como não ser. Me chamavam de suja, de imunda, me comparavam aos porcos no chiqueiro. Eu me lembro de tudo isso. Mas nunca me falaram que eu deveria me limpar e como deveria me limpar. Acabei crescendo com a mente imunda, presa nas tripas e nas entranhas dos porcos que eles matavam. A mente vermelha e os grunhidos de agonia. Como eu era um amontoado de lixo, que nem ao menos tinha o mesmo sangue que o deles, não costumavam tocar em mim. Lixo é nojento, ninguém quer o lixo por perto, ninguém quer olhar para o lixo. Mas estou sendo injusta... Meus “primos”, aqueles que tiveram a sorte de nascer na gloriosa estirpe daquela família, não gostavam de ser abraçados e então, quando os pais deles queriam ensiná-los como deveriam se comportar ao serem abraçados, eles me abraçavam e falavam “Viu? É assim que você tem que se comportar” e me colocavam rapidamente no chão para abraçar os verdadeiros herdeiros. Eu gostava de abraços naquela época, mas agora perderam a graça. Me deixavam sem roupa na puberdade, no quintal, enquanto todos estavam vestidos e jantando. A vida é maravilhosa. Deveriam ter me amarrado, só os gritos não foram suficientes. Eu fui um bom exemplo nisso, um exemplo de como ser subordinada e educada. Minha mãe sempre me disse: “sempre seja gentil com as pessoas, pois elas têm sentimentos, não as magoe” e ela dizia mais “cresça e seja melhor do que eles, consiga muito dinheiro e mostre a todos que estavam errados”. Bom, eu não consegui nenhum dinheiro, mãe. Eles estavam certos, sobre tudo. Eles estavam certos sobre o animal que eu sou, o saco de lixo que deve ser incinerado. Você sempre soube disso, desde o meu nascimento você sabia que eu estava destinada ao fracasso. Todas essas garrafas, todos esses maços e as cartelas de comprimidos. É engraçado como o mundo molda o seu pensamento... Eu sempre acreditei que merecia passar por tudo isso porque eu era uma bastarda e bastardos deveriam ser tratados do jeito que eu fui tratada, como pessoas de segunda classe, como estorvos... Sempre achei que eles estavam certos e eu estava errada. Até que um dia me falaram “você sofreu muito”... E então eu percebi que eu não era a agressora. Mas acho que o estrago é muito grande. Talvez até houvesse chances para mim se a criação tivesse sido diferente. Mas agora isso já está no meu corpo, na minha mente... Não há mais nada para fazer. Eles queimaram tudo o que eu tinha. E eu, como lixo, tenho a obrigação de contaminar a todos. Mundo, mundo, vasto mundo... Prepara-se. Ninguém estará a salvo enquanto eu existir. Alimentem-se bem, por favor, pois eu me alimentarei de vocês. Da sua carne, dos seus medos, dos seus olhos... vocês não estão seguros.

Saturday, June 27, 2015

O Porvir





Estou enlouquecendo e a sensação é agradável. Não há mais a necessidade de se desculpar pelas falhas e pelos acidentes cometidos, há apenas a necessidade de torna-los reais. Todo esse calor no peito, todos os calafrios a cada pequena destruição, o sangue para as grandes destruições. Eu tenho um bom plano na cabeça, uma arma grande para perfurações profundas e certeiras. Bombas vermelhas. Não gosto de tortura, será algo rápido e letal. Será algo indolor. E depois, quando a fumaça tiver baixado, haverá um colorido diferente no chão, um cheiro diferente no ar. Talvez seja a hora de começar a sentir medo, mas estou feliz. Estou eufórica com o porvir. Todas essas novidades, um jardim repleto de boa sorte, o olhar descansado e a boca corada, nem parece que sou adulta. Talvez não haja mais tempo para ser. Sinto como se tivesse voltado no tempo, tudo o que sempre desejei se tornou real. Nós sabemos que isso não vai durar muito tempo. Nós sabemos que talvez nada disso aconteça, que talvez seja apenas um delírio cotidiano, igual a todos os outros. Mas talvez eu realize algo grandioso, igual sempre disseram que eu realizaria. Algo que toque a alma de cada animal na humanidade. Eu vejo todos esses mártires e suas bárbaras proezas. Eu os sigo como exemplo, enquanto os outros continuam a linchá-los postumamente. É uma sensação muito agradável essa. Esses arrepios, a visão de um mar de sangue... Os órgãos espalhados pelas paredes, a maciez ao tocá-los, a maciez ao mordê-los. Parece delicioso... Tudo o que está porvir parece muito empolgante e consolador.

Sunday, May 10, 2015

Recorrência


Há cinco anos isso começou a me tranquilizar. Eu tinha uma data e o método planejados. Minha mente já estava pronta, eu estava preparada. Mas o inesperado aconteceu e a correnteza se acalmou. Agora eu voltei aos mesmos métodos. Esses pensamentos, que me acalmam, essa recorrência só me faz ter certeza de que acontecerá de novo e de que, mais uma vez, precisarei contar com a sorte para sair disso. Precisarei de mágica, do inesperado, para que as coisas se resolvam. Não tenho uma data por enquanto. Essa tristeza ainda está se encaixando no meu corpo. Tudo é bem claro e bem nítido. A vida é compreensível e consigo enxergar o início e o fim das peças que me montam. Consigo enxergar tudo isso, claramente. Consigo enxergar o vazio de um universo cheio de vácuo. Um universo sem vida e sem deus. Tudo faz sentido, todas as peças se encaixam, tudo se justifica. Esses pensamentos, o silêncio só costumava vir em momentos de crise. Mas agora todos os segundos são momentos de crise. A dor de cabeça, o cansaço, tudo... tudo isso não deveria estar acontecendo. Eu não deveria ter acontecido. Eu estou errada desde o começo, cada célula no meu corpo é errada. Estou exausta. Vou corrigir o erro de uma vez...


Thursday, April 02, 2015



Eu acredito que sempre fui uma especie de brinquedo. Um daqueles brinquedos comprados por impulso que você simplesmente enjoa e deixa de lado com o tempo. Acredito que fui esse tipo de brinquedo a minha vida toda. Fui a sensação do momento em um segundo e a escoria do mundo no segundo seguinte. Todos esses ápices e declínios moldaram a minha vida curvilínea, ladeira a baixo. Não há muito o que se esperar de alguem como eu, você ja sabe como termina, ja conhece a surpresa. Eu sempre fui uma grande vergonha. Meu nascimento foi uma vergonha e consegui ser rejeitada pelas minhas três familias. Sou considerada irresponsável e insensível. Fria como um objeto, como uma boneca deixada de lado para a doação ou reciclagem. Não sei lidar com as pessoas porque não convivi com elas. Passava os dias trancada na minha redoma de vidro, cercada de alienígenas e pornografia. Não há muito o que se esperar de mim senão o fracasso. E você, que ainda possui expectativas sobre um estorvo como eu, não se preocupe... Te levarei comigo e afundaremos todos juntos na desgraça da minha existência.

Sunday, March 22, 2015

Vai melhorar.


Quando somos crianças temos grandes objetivos de vida. Tudo é maravilhoso porque tudo está distante. Mas você cresce e os sonhos se apagam, a vida se torna impossível. Cada sonho se torna uma estrela, infinitamente longe e brilhante, te assombrando pela janela nas madrugadas de insônia. Essas noites tristes estão voltando com a mesma frequência de antes. Estou perdendo o controle de novo. O controle que sempre falaram que eu deveria ter sob os grandes objetivos que sempre disseram que eu teria. Eu deveria ter. Para apagar os sinais da bastarda que sou na família racista na qual cresci. “Você precisa ser maior, precisa ser grande, precisa ser melhor”, diziam. E eu acreditei. Acreditei que eu teria potencial. Eu li tudo o que me deram, li tudo o que me falaram, li mais do que precisaria, mais do que são capazes de entender, eu estudei até o ápice do meu cérebro, eu me castiguei a cada erro, a cada desaprovação e humilhação. Mas não foi o suficiente. Me desculpe, não foi o bastante. Tudo o que eu fiz não foi o bastante. Me esforcei tanto para nada. Andei descalça no gelo, só para provar que eu seria capaz. Mas não foi o suficiente. Foi sufocante. O céu está caindo sob minha cabeça e não há nada por cima dele. Me desculpe por decepcioná-los sempre, diariamente, a cada segundo. Eu compreendo como vocês se sentem, eu compreendo a vergonha. Eu também me sentiria assim se tivesse um fardo incapaz de cumprir ordens simples. Eu entendo e peço desculpas sinceras, de todo o meu coração. Mas não se preocupem. Sempre ouvimos que as coisas vão melhorar... e vão mesmo. Tudo vai melhorar e a vida sorrirá para vocês novamente. Sem estorvos ou pesos para carregar. O quarto ficará limpo e as vergonhas serão redimidas... esperem e o sol iluminará os seus dias novamente, assim como iluminava antes de mim... tenham apenas um pouco mais de paciência e verão... vai ficar tudo bem... tudo bem de novo.

Monday, January 26, 2015

Destruição


Não sei se deveria compartilhar isso, mas a essa altura não faz muita diferença. Eu tenho uma mutação genética presente na família, que me torna ligeiramente inclinada ao caos. Todos os membros da minha gloriosa família de "ninguéns" sofrem com esse mal e estamos diariamente buscando destruir e dar uma razão a nossa existência simultaneamente. Esse pequeno “desvio do padrão aceito” começou, até onde tenho noticias, com meu bisavô e sua suave tendência hedionda. Seu crime foi tão violento quanto às evidências que ele deixou para tras, o que não deixa de ser a outra face da família: a desorganização. Daí em diante ninguém, ao menos não até o momento, conseguiu superar sua barbárie, mas estamos nos empenhando, inconscientemente, para que isso ocorra o mais breve possível. Temos esse gene egocêntrico e assassino que nos faz querer nos destacar por nosso vazio e agressividade. Cotidianamente preciso tomar o controle de mim mesma para que acidentes não ocorram, preciso olhar para os dois lados várias vezes antes de atravessar a rua e pensar em todas as falibilidades possíveis antes de me empenhar numa possível agressão física com estranhos. Eu luto contra esse desejo genocida todos os dias, antes de acordar até a hora de dormir, meus pensamentos se concentram nos órgãos e na carne alheia. Houve momentos em que estive muito próxima de perder o controle, não sentia mais empatia pela vida humana e já não respeitava mais as regras sociais. Em momentos de crise também perco o respeito pela minha própria vida, e a vontade de causar dano aos outros é maior do que a de me manter viva. Meu acidente, há dois anos atrás, em parte ocorreu devido a esse ódio inconsequente e misantropo. Desde então estive bem, mas as coisas têm piorado miseravelmente... e eu sei ler os sinais da minha insanidade, escritos por gerações de perdedores na minha genética caótica...