Thursday, December 08, 2011

A vida é uma festa.



Eu sou uma pessoa inconveniente.

Já me descreveram como “rabugento”, “chato”, “antissocial” e até “pagodeiro”.
Não sou nada disso, sou uma pessoa normal, pacata e reservada. Tenho todos os meus vícios, três na verdade, algumas qualidades e defeitos também. Sou controverso, não gostam de mim ao primeiro olhar e me odeiam a primeira palavra. Eu causo desconforto nas pessoas, sou sincero. Sou sincero sendo mudo seletivo. Isso tudo irrita.

Quando estou feliz, bebo até me sentir enjoado. Quando estou estressado, fumo até meu pulmão inchar e o mundo ficar amarelado como o cheiro do tabaco. Quando estou desesperado me corto, abro e reabro as feridas, até o sangue ficar aguado. E escondo tudo isso debaixo dos panos. Talvez pareça estranho, mas para mim são coisas cotidianas que passam e se alternam como as fases da lua. Com todo mundo.

Há alguns anos atrás, quando eu era inocente como uma criança recém-nascida para o mundo, tentava me socializar com as pessoas. E com as pombas da praça também. Mas não há nada que me agradasse mais do que a solidão. Gatos, ratos e garotas cujas palavras soem como poesia podem me acompanhar se quiserem, e se eu quiser. Eu ofereço um mundo próprio e utópico, entre outras grandes vantagens confidenciais. Em troca peço sigilo.

É um mundo horrível no qual não se pode ser quem você é. Mesmo que todos saibam quem você é e mesmo que eu saiba quem cada um de vocês é. A vida mais parece uma festa a fantasia, na qual todos os convidados que tiram a mascara são expulsos e tem que assistir a festa do lado de fora. Mas quem precisa de uma festa quando se tem cigarros? Quem precisa ir a uma festa? Te obrigaram a ir e você nem percebeu.

Wednesday, October 12, 2011

Expectativas



As pessoas costumam me miniminizar. Não as culpo por isso. Elas se perguntam como eu cheguei tão longe. Alguém que fala como eu, alguém que se porta como eu não chega aos lugares que cheguei. Elas me perguntam como consegui. E se questionam, internamente, sobre quais métodos ilícitos, místicos e obscuros eu utilizei para ter tudo isso. Elas realmente não entendem. Eu entendo. É uma posição muito alta para alguém que estava fadado ao fracasso. Ás ruas e aos sonhos não realizados. Eu jamais os realizarei, mas agora sou onipotente, não preciso mais de sonhos. As pessoas não entendem como isso aconteceu. Algumas acham que eu não mereço. Outras, por dó, se mostram felizes. Mas ninguém entende. Ninguém percebe que eu apenas superei todas as expectativas...

Sunday, September 25, 2011

Dias dificeis.




Eu ascendo um cigarro e me desvio da fumaça. Você pediu para que eu parasse de fumar. Mas estou entendiada e todas essas parafernálias jogadas pelo quintal só aumentam o meu tédio. Eu sou a rainha do mundo. Eu posso quebrá-las. Eu ando de bicicleta, gritando com as coisas do quintal. Peço para que se desviem do meu trajeto e saio driblando entre duas rodas todas essas coisas inúteis. Eu sou a rainha do mundo. Mas cortei meu joelho cheio de cicatrizes enquanto andava de bicicleta. Gostaria de quebrá-la no meio. Levantá-la pra cima, acima da minha cabeça, e jogá-la no chão com força. E então eu bateria no peito, igual a um animal, a uma selvagem, e chamaria os outros pra cima. Venham e eu acabo com vocês. Gostaria de quebrá-la. Esses tem sido dias tristes. Ter conseguido tudo o que eu sempre quis me fez mal. Agora acho que consigo tudo o que eu quero. Mas não posso te dar aquilo que você tanto deseja. Eu fiz promessas, eu me sacrifiquei e me machuquei deliberadamente. Te ver triste me irrita. Você diz que estou cansada. Ascendo outro cigarro. E a fumaça lacrimeja meus olhos.

Sunday, May 01, 2011

Genealogia



E chovia muito naquele dia também. Assim que eu soube da morte dele, um vento frio atingiu meu rosto, chacoalhou as roupas no varal, as folhas das árvores no quintal e começou a chover. E desde então, não parou mais. E a sensação de impotência voltou. A minha filha também não parou mais de chorar. As mãos ensopadas de lágrimas, o lenço úmido. Sem consolação. E que consolação poderia haver? Ela perdeu um filho e uma sobrinha muito querida. No último mês eu perdi dois netos. E os perdi de maneira evitável. Eu podia ter evitado a morte deles. Mas o destino sempre nos prega peças desagradáveis. O tempo todo com peças desagradáveis. Foi verdadeiramente trabalhoso chegar ao funeral. Ele morreu muito jovem. Mas não sei se daria a minha vida em troca da dele. Nesse momento, talvez, sim. Mas mesmo tendo o triplo da idade, eu sinto que vivi muito menos do que os meus dois netinhos. E creio que as pessoas sentadas ao redor do caixão, algumas chorando, algumas de cabeça baixa, tristes, fingindo que se importam, mas na verdade só se resignando com o tempo lá fora, também pensam assim. Ninguém se importa de verdade. Se se importassem não teriam agido com tanta má fé, tanta falta de cuidado com eles. Isso de se importar depois de ter falado tão mal, de ter apunhalado pela frente e pelas costas pessoas sem opções e sem qualquer outra escolha, não existe. Não, não existe. Não me conformo com isso. E ainda vêm até aqui, dar os pêsames. Pouca vergonha e falta de cara de pau. Bom... Pelo menos deram os pêsames. Talvez, de fato, estejam arrependidas. Eu, no lugar delas, também estaria. Mas parece que já gastei todo o meu estoque de lágrimas nesse mês. E fica tão feio não chorar no enterro do próprio neto. O caixão descendo, as flores caindo. E ele finalmente desapareceu de nosso contato físico. E como estava acabado, não? A pele estava seca, como a de uma múmia. O rosto muito magro, os braços finos e as cicatrizes de brigas e tiros pelo corpo. Como isso foi acontecer, hein? Como tudo isso aconteceu? Parece que ontem mesmo ele corria pela casa, pequenininho, o macacão azul sujo de papinha. Sorrindo, assistindo televisão e esperando o pai vir buscá-lo para sair. O tempo passa rápido demais. Talvez se tivéssemos mais tempo para pensar nas nossas atitudes, nas nossas falas, tudo seria diferente. Teríamos mais controle sob a nossa própria vida. Minha filha não pára de chorar. E por mais que eu a abrace e tente animá-la, a dor não sai. Dê uma boa olhada, aí de cima, Murilo. Veja quanta gente sofrendo por você aqui embaixo. Por que foi se meter com as drogas? Sua vida era difícil, eu sei disso como ninguém. Mas a nossa também não era fácil. Não tinha por que dificultá-la ainda mais. Talvez seja castigo. Nós podíamos ter feito mais por você, mas naquela época não sabíamos que as coisas acabariam dessa forma. Será que foi o divórcio dos seus pais? Mas, tantos pais se divorciam por aí, e os filhos não mexem com drogas por causa disso. E a Luiza, então? A mãe distante. Só ficou sabendo que a filha se matou duas semanas depois do funeral. Não conseguíamos falar com ela. Se mudou de casa e não avisou ninguém. Nem a própria filha. E chorou tanto quando soube. Deu até pena. Deu pra ver, no fundo dos olhos vermelhos, que apesar dos pesares, apesar da distância, ela se importava, sim. Se importava muito. E a filha, talvez, nunca soube disso. Talvez a Luiza também não soubesse o quanto era querida por mim. Eu a vi nascer, vi meu filho abraçá-la com a ternura que eu o abracei quando ele nasceu. Eu a vi crescer, tímida e isolada de tudo e todos. Mas extremamente inteligente. Não creio que ela tenha enlouquecido de tanto estudar, como falaram as más línguas por aí. Alguém que é tão inteligente assim não faria umas coisas dessas só por que o cérebro não cabe mais na cabeça. Não dá, não faz sentido. E eu vi tudo isso, Luiza. Eu vi a vida de vocês dois. E agora a minha vida é uma extensão das memórias de vocês. Tal qual uma mala velha, desbotada por fora, cujo conteúdo interno resume-se a fotos e mais fotos e mais fotos. E eu abro essa mala a cada segundo, e busco, entre as centenas de fotos guardadas, as que justificariam o caminho que a nossa vida tomou. E não encontro nenhuma foto. Não encontro nenhuma solução. E eu não me esqueci de vocês. Eu ainda me lembro muito bem de vocês. O sol de domingo paira sob a minha cabeça como uma cruz de expectativas que tenho que carregar. E a carrego com um sorriso falso nos lábios. As pessoas me cumprimentam e o sorriso continua lá. E eu tento ser sincera e dizer que já passou, que está tudo bem. Mas não passou. Embora o enterro tenha sido há muitos meses atrás, os rostos dos meus netos continuam. Eu pareço ver esses rostos na multidão. Mas olho de novo e não é nenhum de vocês. Não é ninguém. Mesmo sabendo que vocês comprovadamente morreram. Mesmo tendo visto o corpo no caixão lacrado desaparecer de mim. Ainda assim, eu nutro a esperança de que vocês não morreram. Estão vivos e encenaram a própria morte para fugir de todos os problemas do mundo. Ou que ressuscitarão e sairão de seus caixões. E os cientistas se diriam surpresos com tal fato e não saberiam explicá-lo. Mas eu sei que isso tudo é besteira. E eu não consigo evitar. Parece que eu nem vivo mais. Vivo de passado, das lembranças de vocês. E o sábado a noite perpetua minha solidão. Não quero sair de casa, não insistam. O telefone nem toca mais. Está fora do gancho há semanas. Por que fizeram isso comigo? Por que Deus fez isso comigo? Entre tanta gente no mundo, por que eu? A casa escura, as luzes queimadas, a louça suja, nada mais me interessa. Os dias passaram tão lentamente, já estamos na metade do ano. Nem parece. O tempo passa de um jeito ou de outro. Eu não me importo mais. A TV exibe sua programação diária de chuviscos. Meu programa favorito nas madrugadas. Nada mais me importa, nada mais me assusta. Seu rosto refletido no espelho do banheiro, não me assusta mais, Murilo. Desista. Você continua tão magra, Luiza. Vá limpar o sangue dos braços, tem toalhas limpas no guarda-roupa. Enxugue as lágrimas e me traga um lenço para que eu possa enxugar as minhas também. Por que vocês estão na casa da sua velha avó nessa sexta-feira a noite? Vão para as festas, vão viver a vida e me deixem sozinha. Ninguém se importará. Nem eu mesma. Agora, é a hora de me virar por conta própria. É a hora de aceitar as minhas próprias decisões e caminhar, fechada, para o fim. A luz da TV ilumina meu caminho de destroços e cinzas. A luz da TV. O que será que está passando agora? A janela parece tão longe, tão alta daqui de baixo. Pensei que sentiria muita dor, no começo, mas o tédio e o remorso predominam até na hora da morte. Acho que a eternidade me condenará pelos meus pecados, o que você acha, Murilo? Talvez nada tenha valido a pena, desde o começo.

Sunday, March 27, 2011

A Madrugada



A madrugada,
antes tão apreciada e cobiçada,
Agora restringe-se ao sono,
à minha apatia

De meia década atrás
em diante, perdi meu charme,
Eu sei que perdi, Louise

Mas estou subindo a escada
da glória e das vitórias
Consecutivas, seguidas
e redentoras

Essa falta de charme
essa falta de tato
me redimirão da vergonha
diária e familiar

Que vergonha, Louise
agora ficou para trás
Assim como o charme,
a elegância, assim como
A madrugada,
antes tão apreciada e cobiçada...

Monday, March 21, 2011

Eu nem mesmo pensei em fazer correções



Repita para mim
Aquelas palavras acumuladas em nossas mentes
Escondidas atrás de seus dentes
Suprimidas por um sorriso no canto da sua boca

Diga de novo
E você será eternamente minha
Minha favorita entre todas as outras
Apenas diga mais uma vez

Você sabe como fazer
Me apunhale e me esquarteje
Esparrame meus pedaços pela casa escura
E chore por mim, reze para que eu volte

Diga que me ama
E eu voltarei, você sabe disso
A felicidade transbordará de nossos olhos
E um abraço será um detalhe imperceptível
No turbilhão de mais uma de nossas brigas

Sunday, February 06, 2011

O Caminho.



Os campos verdes pelos quais havíamos caminhado
Em breve, retornarão ao que eram antes.
Se transformarão no deserto cinza e gelado
Do qual insistimos em nascer.

As expectativas estraçalhadas pelo caminho
Uma trilha de migalhas deixadas ao vento
Uma trilha de pegadas deixadas ao tempo
Que não escutará a clemência
Tantas vezes berrada de sua boca.

Cedo, os frutos que colhemos nessa jornada
Se extirparão na nossa fome animal
Marchamos sob uma postura humana forjada
Dançamos e cantamos embalados pelo medo.

O sangue seco que cega nossos olhos
Nos reprime com promessas de castigos
A vida torna a cada um de nós inimigos pessoais
E a luz que emana ao final desse trajeto
É muito pouca. É escura demais...

Saturday, January 29, 2011

À Você.



Sentada sob uma arvore genealógica
As sombras que as folhas faziam em seus cabelos
Rastejam pela minha memória
Enquanto eu me rastejo para ela.

Os dias quentes
Cujo calor não nos incomodava tanto
Como incomoda hoje
Havia algo a mais para nos importarmos
Impregnado no cheiro das roupas e nas pombas negras
Impregnado nos olhares das janelas.

O céu azul, eternamente azul
Enquadrando os prédios novos, velhos e coloridos
Sonhos de cárcere na nossa liberdade concedida
Hoje o ontem parece tão inalcançável e tão familiar.

Apático, como a sua tentativa de sorriso apático
Talhando uma imagem de santa
Imitação bem planejada da minha expressão alheia
Tão famosa e bem distribuída que eu voltaria atrás
E pediria desculpas a cada uma delas.

Mas para ela, que foi duas em mim,
Assinalo o meu agradecimento por todas as surras,
As lágrimas salgadas e oceânicas,
Espécie tão fina e comum de sofrimento
Absorvidas pelo meu corpo, guardadas no meu coração.

A ela, perpetuamente acomodada nas pedras
Naquela arvore foram escritas nossas iniciais
Mas nós duas jamais saberemos disso
Para nós eu deixo os momentos
Nunca apagados ou esquecidos
Do que um dia eu pensei termos sido.

Entrevista.



É como se eu tivesse feito uma série de testes e provações
E tivesse falhado em todos
Ao passo que aquela infinitude de pessoas
Que eu considero minhas inimigas, minhas arquirrivais
Tivessem sido vitoriosas neles.

Talvez haja uma pontinha de inveja nisso tudo:
Eles me renegaram e eu aceitei.
E então tomaram os meus bens
Os meus entes queridos e meus sonhos para si.
Me desnudaram de toda esperança.

Por fim, no dia em que eu tive a oportunidade
De reverter o meu destino roubado,
Por méritos próprios
Eu tropecei em mim mesma
E errei nos detalhes mais insensíveis e importantes.

Passaram com uma marcha sob meu corpo
Me destituíram até mesmo
Da capacidade de vencer.



PS - Escrevi esse texto enquanto agonizava esperando que a empresa retornase. E eles retornaram.

O Homem Que Nunca Errou.



Se gabava de nunca ter cometido um erro sequer.
Sua arrogância premeditada, seus olhos prepotentes ofendiam aos demais humanos. Mas não lhes repeliam. Era um homem famoso na cidade. Dava conselhos de investimentos aos banqueiros, usando seu terno azul caro. Não errava nem no visual. Fazia contas impossíveis para cientistas ganharem prêmios, e ele dinheiro. O governo lhe isentava dos impostos por suas respostas para decisões difíceis. Mas aos que não pretendiam lucrar utilizando seus serviços, ele não servia para grandes coisas. Não fedia nem cheirava. Diziam alias que o rapaz só não errava em vida, pois seus pais erraram feio na sua aparência física. Baixinho, magrelo e narigudo. Como toda a gente da sua família. Com aquele rosto, ele não podia se dar ao luxo de ser falho nos demais setores de sua existência. Você não o reconheceria se o visse numa foto ou na rua. E mesmo depois que lhe dissessem quem era ele, ainda assim uma duvida quanto à veracidade da informação pairaria sob sua cabeça. Era um homem bastante comum no aspecto social. Irremediavelmente comum. De fato, não era uma pessoa perfeita. Era apenas infalível nas suas possibilidades.
Desde pequeno, na época da escola, já demonstrava seu dom para as escolhas certas. Contas corretas, gramática correta. Era a alegria dos professores. Gabaritou todas as provas de múltipla escolha que passaram por suas mãos. Fazia as escolhas certas. Mas não era o que se podia chamar de “sortudo”. Nunca teve chances com sorteios e bingos, pois não dependiam de suas escolhas. E a lotérica da cidade fraudava suas apostas para não perder dinheiro. Absolutamente não era sortudo. Como também não era inteligente ou culto ou vidente. Tinha apenas o talento de escolher a melhor entre as opções disponíveis. Passou a adolescência entre surras dos colegas, que lhe obrigavam a escolher que mão iria socá-lo com mais força, e entre as garotas auto-zelosas e suas dúvidas sobre vestuário e maquiagem. Não se lembra de ter colhido ou cultivado amigos nesse período e em nenhum outro período de sua vida. As escolhas certas não se encaixavam na amizade. E sua estranheza correta também desviava as pessoas de sua direção. Com o tempo, encontrou os caminhos ideais, imaginários e reais, para se despistar do mundo. E viveu sua juventude sendo utilizado como um instrumento preciso para fins tanto preciosos quanto desnecessários. Questionavam-lhe sobre todos os tipos de tema, que exigissem respostas imediatas ou não, mas nunca lhe perguntavam sobre sua própria vida, sobre como foi o seu dia. Em casa, a mãe queria saber se uma pitada de açúcar iria bem naquela receita de doce. E o pai começava lhe perguntando se deveria comprar uma ferramenta nova para consertar o carro e, por fim, acabava perguntando se devia consertar o ou levá-lo á oficina. A resposta sempre exata, sempre funcionava. Ao fim, percebeu que sua precisão era a única característica que mantinha as pessoas perto de si e passou a usar suas respostas para seu bem próprio. Virou consultor. Consultor de tudo. Técnicos de futebol, na final do campeonato lhe perguntavam qual era a melhor tática e quais jogadores usar. Mais de uma vez, os dois técnicos dos times envolvidos lhe pediram conselhos... e o jogo acabava empatado. Escritores queriam um desfecho melhor para seus livros. Diretores também compartilhavam esse desejo. Garotas paparicadas lhe perguntavam qual o melhor e mais rico e mais acessível partido da cidade. Ele respondia “sou eu”, mas ninguém achava muita graça naquilo, então ele voltava à seriedade de sua consultoria e a frieza, com o tempo, o tornou distante e vago. Todavia, o artificio, que era o próprio rapaz, passou a causar controvérsia e desaprovação quando, em determinada quarta-feira à noite, setores da oposição, preocupados com a eleição que se aproximava, se direcionaram discretamente a seu escritório para lhe questionar qual seria o melhor método para se ganhar as eleições. O rapaz deu seu parecer. Dali há algumas semanas, o partido do governo também, utilizando uma discrição culposa, lhe fez a mesma pergunta. Ele, então, sugeriu que ambos os partidos se unissem, formando uma aliança política forte e intocável e invencível. Venceram as eleições no mês seguinte, sob indagações de estranheza da população e motins de protesto da nanica oposição que restou. O fato se consumou numa ditadura ás escuras, com direitos civis sendo podados lentamente e os movimentos sociais, já naquela época apagados, abafados em salas de tortura e campos de trabalho forçado. Bilhetinhos anônimos, cujas letras eram retiradas de jornais e revistas, ameaçavam o rapaz de morte. Atribuíam-lhe todo o caos e sofrimento que se espalhava, não só pelo país, mas por todo o continente. Ele, sentado na sua poltrona de couro ao lado do calor da lareira vermelha, não se intimidava com aquilo. Pelo contrário, a publicidade garantida com o resultado das eleições expandiu sua fama de infalível mundo afora. Pessoas de várias nacionalidades, com interesses distintos, se amontoavam sob sua porta, dormiam na sua calçada e faziam filas quilométricas ao redor de seu quarteirão. Ele era visto como um santo milagreiro. Mas atendia apenas aos que tivessem condições de pagar o preço da melhor opção. Não havia dúvida para qual não houvesse solução e qualquer pergunta teria uma resposta ainda mais adequada, dependendo do valor que ele julgasse apropriado para tal. Sob essa sombra de mercenário, um grupo de militantes aterrissou em seu escritório num dia quente qualquer. Após o maço cheio de dinheiro ser posto ás suas vistas, o grupo lhe perguntou o que era necessário fazer para se derrubar o governo. O rapaz lhes disse, com detalhes, as ações que deveriam ser realizadas pelo grupo que, satisfeito e confiante, saiu dali gritando a plenos pulmões que a ditadura terminaria, derrubada pelos conselhos que outrora estiveram do outro lado. A população comemorou e o ocorrido chegou aos ouvidos do delegado da cidade, que informou ao prefeito, que informou ao governador, que informou ao presidente que ordenou a prisão do garoto. E, no dia seguinte, quando se preparava para sua rotina cômoda e pacata, rumo aos atalhos de sua vida social, ele foi abordado e levado pela polícia num carro escuro e brilhante. Sem saber aonde estava ou com quem falava, ele se viu algemado, o corpo dolorido, com manchas de sangue e arranhões, respondendo, em troca de uma prometida liberdade e sob a mira de uma arma, o que deveria ser feito para o governo não ser derrubado jamais. Apesar de ter dado uma resposta, só foi libertado seis meses depois. Estava fraco demais para fazer um panorama da situação que o levou á prisão e que viria a encontrar lá fora. Sua escolta rumo à liberdade foi feita por apenas um guarda, suado com o calor de março e abatido com alguma preocupação que o rapaz desconhecia. Não havia outros guardas no local, quiçá presos. O silêncio daquela prisão lhe dava uma aparência desértica, como se fosse afastada da civilização, construída numa terra virgem e remota cuja distancia infinita não permitiria que homem algum colocasse os pés e desbravasse suas celas vazias e escuras. Enquanto o rapaz passava por essas mesmas celas, tentou calcular mentalmente o patrimônio que ele ainda podia dispor para a próxima semana, enquanto se reestabelecia dos dolorosos seis meses que passou na cadeia. Os gastos com o aluguel atrasado, as prestações dos móveis, a conta de luz, de água e de gás não lhe deixaram uma quantia muito grande. Teria que se reerguer do zero e começar tudo de novo. Desviou o olhar para o guarda por um segundo, a farda estava torta, o quepe na mão esquerda abanando as moscas e o calor. O suor. Aquele era um dia muito quente. Enfim, eles se aproximavam da saída e o policial desfrouxou as algemas que vieram apertando suas mãos por todo o trajeto. O sol, que ele havia esquecido se de se lembrar que existia, chocou-se aos seus olhos e emitiu uma onda de incômodo sentido por todo o seu rosto. O mundo lhe parecia estranho. Tinha alguma coisa errada, pensou ele. Olhou novamente para o guarda, tentando captar um sinal de estranheza dele que confirmasse a sua dúvida. Mas o guarda se mantinha impassível e alheio, olhando aos arredores como se procurasse algo ou alguém. O rapaz, então, desviou seu olhar impulsionado por um som que, a princípio, considerou grunhidos de cachorros e, finalmente, percebeu se tratar de uma multidão revoltosa que se exprimia no quarteirão vizinho. Uma multidão que gritava para si e contra si, vindo em sua direção. Assim que ficaram a uma distância razoável, o guarda gritou É esse que vocês querem! Ele, agora, pertence a vocês. E que a justiça divina se manifeste na justiça do povo e que o povo seja o algoz daquele que foi o algoz do povo. Agora, ele está sob a vossa custódia. Façam com que ele sofra tanto quanto nossos pais, filhos e amigos sofreram por causa dele. E o guarda o jogou em direção a escadaria da prisão rumo à multidão. O rapaz ainda estava algemado, a camisa desabotoada e a barba mal feita pingando suor, olhou sob o ombro para o policial, que agora sustentava uma expressão de ódio impávido, enquanto também olhava para o garoto. Dois homens, com pedaços de madeira, se distinguiram da multidão e se aproximaram, pegando-o pelos cabelos e obrigando-o a segui-los. Um dos homens bateu a madeira sob suas costas, gerando um estralo forte e doloroso. O rapaz gritou e as lágrimas escorreram instintivamente, se misturando com o suor salgado acumulados no seu rosto. Era um dia muito quente. Já dentro da multidão, que se afilava para linchá-lo, ele buscava reconhecer algum dos indivíduos, gritando por piedade, mas aquelas pessoas pareciam tão destorcidas e desconhecidas para ele quanto uma arvore no horizonte sob o sol do meio-dia. E ele gritava e gritava a cada pontapé novo, a cada cusparada e socos direcionados a ele. Então, de súbito, a multidão raivosa se aquietou e, o mesmo homem que lhe levou para dentro daquela aglomeração, lhe puxou novamente os cabelos, erguendo sua cabeça e ele constatou, com sua própria visão, a dimensão que as suas escolhas trouxeram àquela gente que era também a sua gente. E cada rosto desconhecido, cada rosto nítido, diferente e exclusivo, que lhe olhava com raiva em cada expressão da face, vivenciou sofrimentos e infortúnios que também poderiam ter sido o seu. Mas o mundo é muito grande e os rostos eram muitos, assim como os sofrimentos, para que ele pudesse parar seu tempo e pensar em toda aquela gente, naquela época. Cadáveres na rua. Pretos, brancos e amarelos. Todos manchados com o vermelho vivo dentro de cada ser humano. Manchados de sangue, feitos da mesma composição que o sangue que escorria de sua testa, de seu corpo. As manchas pretas de sangue pelo corpo. Sangue, ele pensou. E então seu destino se clareou à sua frente e o sol pareceu brilhar mais forte e mais ardente por um breve momento. Mas o momento passou quebrado pela raiva da multidão. Os rostos gritavam e, dentre as vozes distintas e as palavras diversas, ele parecia escutar apenas uma frase. Se não fosse esse farrapo de gente, não teria havido guerra! Se não fosse ele, esse maldito que desgraçou toda a nossa vida, não teria havido a guerra que devastou as cidades, os campos, que devastou o continente! O mundo gritava para si. Todos contra mim, todos me odeiam, desde o começo, desde o começo a minha vida me guiou, utilizando meus próprios pés, para isso, desde o começo esse sempre seria o meu destino. E as pancadas pareciam suaves demais para o que ele merecia na sua concepção de castigo. Tudo parecia delicado demais para alguém como ele. É verdade, é verdade!Vocês estão certos, eu estraguei a minha própria vida e levei a de todos vocês comigo. Eu pediria desculpas, mas não é o suficiente, eu reconheço. Eu reconheço! A voz ecoou mais forte e calou as demais. Me dêem o castigo que eu mereço, e eu sei que é o pior castigo possível. Me dêem o mesmo sofrimento que eu causei a todos aqui e a todos que não viveram para estar aqui. Eu aceitarei o veredicto que me derem, qualquer que seja, eu aceitarei. E então, pela primeira vez desde que saiu da prisão, escutou-se o vento varrendo as ruas sujas de pedaços de gente e de esperanças.A multidão, num momento de extremo racionalismo, parou e passou a planejar qual seria o castigo ideal para aquele homem sujo de um sangue, que além de ser seu simbolizava também o sangue derramado por suas palavras. E, num raro momento de compreensão e burocracia humana, as pessoas escolheram lhe dar uma chance de se redimir. Assim como também lhe dariam a chance de pagar por seus crimes, que sequer eram seus. Lhe deram duas opções, uma que significaria continuar vivendo, com limitações, mas vivendo. E outra que não poderia ser expressa de outra forma senão como a própria morte. O homem, que sempre havia sido rápido nas suas decisões, sentou-se frente as suas possibilidades e pensou nas duas escolhas que o destino lhe dava naquele momento. Para a multidão, impaciente que assistia ao raciocínio do rapaz como se assiste a uma novela, aquele momento pareceu durar muitas horas. Mas para ele, passou tão rápido como passou a sua vida. E então, levantou-se de seus pensamentos e gritou ao povo sua decisão. As cabeças se abaixaram, alguns olhares se enfureceram e o ritual começou. Como em todos os outros momentos de sua vida, aquele homem, que nunca havia errado nas suas demais decisões, mais uma vez, manteve sua fama de infalível e fez a escolha certa.