Friday, October 22, 2010

Concurso Todoprosa de Microntos para Twitter.

Sérgio Rodrigues:

“Sem a literatura, não sei o que eu faria. Não faria nada. Seria um bestalhão.” MILTON HATOUM

Concurso Todoprosa de Microcontos para Twitter

Expandindo a experiência iniciada aqui esta semana, em busca do que por enquanto é pouco mais que uma miragem – uma literatura forte no Twitter – lanço o Concurso Todoprosa de Microcontos para Twitter.

Por trás do nome que as iniciais maiúsculas ajudam a tornar (ironicamente, combinado?) pomposo, uma brincadeira simples: estimular a produção de micronarrativas em formato de tweet, com 140 toques no máximo, mas que consigam atingir alguma densidade literária.

A tarefa é mais difícil do que parece à primeira vista. Para começar, esse papo de twitteratura já rola por aí há algum tempo, o suficiente para que até a conservadora Academia Brasileira de Letras, pulando alegremente no bonde digital, organizasse este ano seu concurso, vencido por esta historinha de Bibiana Da Pieve:

"Toda terça ia ao dentista e voltava ensolarada. Contaram ao marido sem a menor anestesia. Foi achada numa quarta, sumariamente anoitecida."

Daí decorre que a maior dificuldade do microcontista-tuiteiro é que, sinal dos tempos, seu formato mal nasceu e já está superexplorado. Não faltam microcontos por aí, como se pode conferir na profusão de links reunidos nesta página. Some-se a isso a vasta produção de aforismos no Twitter – que também são uma forma de literatura, embora não de narrativa – liderada pelo poeta Fabricio Carpinejar, com seus 68.503 seguidores, para se ter um quadro próximo do inflacionário.

Acertar na mosca, porém, não ficou mais fácil nem mais difícil do que sempre foi. Ocorre que a concisão extrema é um desafio eterno. Muito antes de existir Twitter, Dalton Trevisan já escrevia assim:

João, tua mulher é amante do doutor Pedro e não é de hoje. – Um amigo."

E Ernest Hemingway, assim:

"Vendo: sapatinhos de bebê, nunca usados."

As regras do concurso são simples:

1. O microconto deve delinear uma narrativa (história) em 140 toques no máximo.

2. Qualquer leitor pode participar com até dez microcontos, desde que submeta um por vez, na caixa de comentários abaixo.

3. As inscrições se encerram na próxima sexta-feira, dia 29.

4. Os três melhores microcontos serão publicados neste blog em forma de post e o resultado, divulgado no Twitter e no Facebook.

5. O primeiro colocado ganhará um exemplar autografado de “Sobrescritos”, meu livro mais recente.

6. A comissão julgadora é composta de um homem só, eu mesmo, e suas decisões são soberanas.

Quem quer brincar?

ATUALIZAÇÃO ÀS 14h14: O segundo artigo das regras foi alterado para incluir o limite de dez microcontos por autor. Inscrições acima desse limite serão desconsideradas.

http://veja.abril.com.br/blog/todoprosa/vida-literaria/concurso-todoprosa-de-microcontos-para-twitter/




Como é a VEJA que está fazendo esse concurso, eis aqui o meu conto, pois sei que o censurarão lá:

Wednesday, June 30, 2010

Felipe.



F. V. me salvou de mim mesma.
Nunca nós vimos, mas nos conhecemos.
Uma tarde ensolarada qualquer, ele me pediu para conversar.
F. V. confessou a mim parte do que muitos consideram um pecado grave.
Um pecado sem perdão e sem volta.
E nós tínhamos tal pecado como a solução ideal.
Mas F. V. abandonou suas roupas, seu quarto reservado e voou livre para o fim.
Hoje seus cigarros do mês de junho, que jamais serão fumados,
Abrigam o que um dia foi agonia.
F. V. finalizou sua ansiedade e bloqueou minhas expectativas
Que antes eram o meu desejo para mim mesma
E agora me abatem como um copo cheio de forte realidade,
Degustado num só gole.
A sua vida nunca é só sua, pertence a muitas outras pessoas ligadas a você.
F. V. salvou minha vida,
Embora ele mesmo tenha se permitido trilhar um caminho errôneo.
Eu não me esquecerei dele.
Cada fumaça que arde em minha garganta será uma recordação sua
E cada momento em que vida rodear esperançosamente os meus dias
Serão dedicados a você.

Wednesday, June 23, 2010

Velhice.



Sob a luz do amanhecer, percebeu que a mulher estava quieta demais.
Em geral, a esposa costumava resmungar, roubar o edredom e rolar na cama, empurrando o marido para o chão, enquanto dormia. Durante os primeiros meses de casamento, ele tardou a adaptar-se ao agitado sono dela. Mas, após sessenta e cinco anos de casados, parou de ir dormir no sofá quando a noite não prometia nada, e acostumou-se com os movimentos bruscos da mulher no decorrer da madrugada. Por isso estranhou a tranqüilidade da esposa na noite anterior. Pensou que, talvez, com a idade, o cansaço acumulado dos anos pelo corpo a tivesse acalmado. E, de fato, cultivou essa idéia enquanto se arrumava para comprar pão na padaria da esquina. Ele era aposentado. Trabalhou a vida inteira como engenheiro, construiu prédios por todo o país, inclusive a casa na qual os dois moravam. Agora, as paredes de cada cômodo tinham rachaduras e infiltrações. Mas ainda assim, ressoavam o charme e o esplendor de outrora. Outra época, outra vida. Hoje, só restavam cacos do homem que era há décadas atrás. O cabelo brilhante, refletindo sob as luzes noturnas nas ruas dos anos 50. As mulheres com seus vestidos compridos, óculos grossos e sutiãs pontudos, piscando discretamente para ele. Era um rapaz bonito. “Encantador”, ele seria capaz de dizer. Embora não tivesse mais aqueles músculos, ainda mantinha a mesma postura física. A cabeça erguida, mãos para trás, como quem espera, de maneira esnobe e inquieta, pelo impossível. Olhou-se nos olhos, no espelho do quarto. Buscou bem no fundo de sua alma se ainda havia algum vestígio da personalidade errante que possuía. Não soube responder a si mesmo. Mas, conclui que, da mesma forma que perdeu fio a fio de seu cabelo brilhante, também havia perdido, em algum dos muitos anos de sua vida, o charme que lhe era peculiar. Terminou de dar o nó na gravata. Sabia que os jovens olhavam suas roupas com estranhamento, mas era incapaz de aderir à moda atual. Tinha asco dos velhos que se vestiam como se ainda tivessem 20 anos. Ele não era esse tipo de pessoa, não mentia para si mesmo, não buscava disfarçar a idade com roupas, as rugas com cirurgias plásticas e a impotência sexual com remédios. Olhou de relance, ainda pelo espelho, para a esposa. Ela não mexera nenhum dedo desde que ele acordou. Por um segundo, a idéia de que finalmente a vida abandonou o corpo de sua mulher lhe veio à cabeça. Buscou afastar, inutilmente, tal pensamento. Mas, na idade em que ambos estavam, ignorar que não se vive mais para o futuro, mas sim para uma morte cada dia mais próxima, era inevitável. Colocou os sapatos engraxados e foi até a cozinha. Abriu a geladeira antiga. Não tinham leite. Adicionou o item à lista das compras que faria na padaria e desceu as escadas. Sempre que saia na rua procurava por casas, calçadas, bancos de praça e prédios cujo material de construção ou a própria arquitetura lhe remetesse ao passado. Tinha consciência da inutilidade de tal busca. Ele sabia que o passado, no qual ele viveu com tanto empenho, jamais voltaria novamente. Mas, tinha uma necessidade insistente de reviver os lugares, embora muitos deles já houvessem se perdido no tempo há muitas eras atrás. Defronte a padaria, avistou um fusquinha amarelo atravessar a rua e perguntou-se, mentalmente, se aquele carro ainda se lembrava dos anos em que ele, agora um velho aposentado, mantinha seu império de glória e felicidade. Seguiu o carro com os olhos. O padeiro lhe sorriu, apreciando, com discreto deboche, o senhor absorto na porta de seu estabelecimento comercial. “Venha, entre, Sr. Joaquim! Acabaram de sair do forno uma porção de pãezinhos quentes.” O velho, acostumado a passar por situações constrangedoras e apto a captar sorrisos desdenhosos e olhares de pena voltados à sua direção, apenas acenou para o padeiro. Girou mecanicamente ao redor de seu próprio corpo e voltou-se a direção de onde viera. O que acabou causando ainda mais risos no padeiro. Voltando para a casa, arrependido pelo gesto impulsivo e cômico, o senhor idoso repensava, mais uma vez, em sua juventude. “Antes o céu era tão azul. Tão vivo. Hoje há tantas nuvens para descolori-lo que nem vale mais a pena olhar pra cima” pensou enquanto olhava para o chão. “A vida é fácil e bonita. São as escolhas que a tornam feia. Eu fiz as escolhas certas que, com o tempo, se transformaram em escolhas erradas. Mas só se vive uma vez. E ao final, as boas lembranças que nunca mais voltarão acabam remoendo a sua alma perpetuamente”. Continuou seguindo em direção a sua antiga casa. “Ah, eu não posso reclamar da minha vida. Ela foi incrível. Eu vivi de uma forma que ninguém poderia imaginar. Eu fui feliz de uma forma que ninguém poderia sentir... mas tudo tem um fim”. Abriu a porta de madeira que dava para a rua, na qual cada uma das rachaduras representava uma recordação calorosa e nostálgica de um passado distante. Subiu as escadas. Torceu a maçaneta e abriu a porta com um estrondoso ruído. “... E ás vezes, algumas vidas acabam antes mesmo de chegarem ao fim” pensou enquanto direcionava os olhos para o interior da casa e para a esposa imóvel. A mulher continuava da mesma forma que ele havia deixado. O sol que escapava da janela refletia em seus cabelos brancos, a pele opaca e enrugada, porém ainda fresca e macia. Ele foi até ela. Sentou-se ao lado do corpo inerte. Segurou, cuidadosamente, a mão esquerda da esposa. Estava fria. Mas era um frio morno. Morno ambíguo. Em todo o caso, ele sentia que algo havia deixado de existir. Algo forte e fundamental. Por alguns segundos, sua vida correu sob sua vista. Desde sua infância, cujas memórias eram incertas e fragmentadas, passando pela ardente juventude que sempre emana uma felicidade dolorosa e, por fim, chegando à vida matura no escritório, com réguas, compassos e calculadoras ao redor de sua mesa. O homem percebeu que jamais realizou seu grande sonho, que era ser desenhista. Apenas fez dinheiro de seu talento. “Mas os sonhos nunca se realizam mesmo” conformou-se consigo próprio. Desviou o olhar para o rosto da mulher. Ela continuava linda. O tempo não conseguiu apagar os traços finos, as maçãs altivas e a boca vermelha de sua face. O tempo não apagou o amor do coração dele. Ele ainda a amava. Lembrou-se de que, com exceção de sua infância, em todas as ocasiões seguintes de sua vida, ela estava presente. Alertando-o dos perigos de uma escolha mal direcionada, de amizades incertas e de desvios em seu caminho de vitórias e triunfos. Sem ela, sua vida não faria mais sentido. Sem aquela mulher com a qual ele dividiu mais de três quartos de sua vida, só restaria sentar-se, observando a vida dos outros passar pela janela, e aguardar ansiosamente a chegada da sua própria morte. Mas a morte dos outros sempre chega mais cedo. Quem ama mais está sempre condenado a sofrer mais do que quem ama menos. E, nessa vida, ele a amava muito mais. “E agora... o que me resta?” cochichou baixinho para as paredes. Sua visão estava turva. Sua vida se desmaterializou em sua frente. Com todas as suas forças, ele tentou desviar o pensamento inevitável. E não o conseguiu. Hesitou. Mas, por fim, decidiu-se convencido da inutilidade de aguardar mais. E foi-se exitoso em sua missão. Sob ás 9h30min do dia 7, uma manhã calma e quente acalentava os olhos assustados das pessoas na rua. O sangue jorrando de um coração quebrado, como um poço de esgoto aberto, anunciava o fim de uma vida. Todos os pensamentos, os sonhos secretos, alguns decretados para outrem, outros, há tanto esquecidos, com amantes esquecidas, jamais seriam mencionados ou reprisados em qualquer outra mente humana, enfim, perderam-se para sempre. Sob ás 9h45min do dia 7, uma manhã calma e quente acalentava os olhos sorridentes de uma senhora numa cama. Ela levantou-se de seu falso despertar. Trocou o pijama velho e desbotado por um vestido antigo, igualmente desbotado, porém infinitamente mais charmoso e elegante. Tirou, debaixo da cama, uma mala antiga com poucas fotos e adesivos de viagem. Tirou do guarda-roupa as muitas roupas que tinha. Depositou as mais bonitas na mala e, entre elas, guardou um compasso do marido, em sua homenagem. A senhora olhou-se no espelho. Seus olhos vividos, sorridentes e cantadores lhe disseram bom dia. Ela lhes cumprimentou de volta. Pintou de vermelho a boca rosa e sorriu para si mesma. Estava feliz. Aquele dia era um dia glorioso. “A liberdade cheira tão bem. Nem mesmo o mofo dessas paredes consegue apagá-la”. Foi até a cozinha. Abriu a geladeira em busca de algo para comer. Não tinha leite, mas ela não se preocupou em anotar numa lista para comprar depois. Apenas pegou uma maçã brilhante, poliu-a e fechou a porta. Desceu as escadas radiante. O dia estava lindo. O céu azul, de um azul intenso e saturado clamava por aventuras. Ela cumprimentou o mundo e o mundo abraçou-a também, com força, para a vida.

Sunday, June 20, 2010

Estrelas.



Hoje eu acordei sem acreditar em mim mesma. Passei as horas por entre comes e bebes, e me esqueci de quem eu era e qual era o nome de minha terra natal. Ao pôr-do-sol um sorriso alheio de bom presságio cruzou meu caminho por algumas horas. Ás vezes é verdadeiramente maravilhoso quando as palavras são direcionadas a você. À noite, eu tentei me resgatar de mim mesma. Me salvar de um fim trágico e previsível. Eu espreitei o céu com fumaça doce saindo de meus olhos e boca e recobrei a memória. Me afirmei que a vida era aquilo. Me respondi que não me importava em me abandoná-la, por maior e mais maravilhosa que ela fosse. Na primeira hora do dia que virá, eu percebi que desejadas expectativas catastróficas aguçam a vontade de quem quer ser feliz. E após eu recontar minha vida, pequenos olhinhos de alienigenas siameses brilham para mim.

Monday, June 07, 2010

Segunda-Feira



O sol queima meus olhos de primavera na luz de inverno. Hoje eu passei por vergonhas vermelhas e solitárias, mas resisti bravamente ao meu próprio constrangimento. Hoje eu refleti sobre tudo o que eu poderia ter sido, mas não fui. Hoje eu acordei soletrando para mim mesma a palavra “solidão” e mantive-a firme na ponta da língua por toda a manhã. Por alguns segundos, há poucas horas atrás, eu me esqueci que não é para mim que os pássaros cantam nessa vida. Há poucas horas sorri para uma desconhecida e exclamei "bom dia" para outra, sem me lembrar de que ninguém, nem mesmo eu, vive para mim. Quando eu ficar mais velha, meu fardo estará deposto. Como um ancião que tem consciência de que suas derrotas são sempre mais intensas que suas glórias, eu terei consciência de minha dor e vergonha. Daqui a um ano, o sol, enfim, sorrirá para mim. E eu sorrirei de volta para ele, sem culpa.

Saturday, June 05, 2010

Cinza.



No quinto dia, o céu amanheceu da cor dos seus olhos. Um ponto do meu corpo, perto da minha orelha, perto das minhas mãos e longe do meu pescoço guarda sangue seco, cego e doloroso. Ontem eu ri e agora só me resta gritar. Mas não há ouvidos de gente ou de animal para me ouvir. A cada dia minha pele fica mais luminosa. Hoje eu perguntei as paredes o que eu deveria fazer da minha morte. Ao mesmo tempo em que as alegrias rodeiam o meu corpo, e não é por elas que quero ficar aqui, há tantas outras proezas incertas e irresistivelmente tristes que me prendem em um sentimento eterno de não-viver. Quando eu tinha 15 anos eu sorria ao respirar. Com meus 19, só dói quando eu respiro. Estou tão exausta de invocar memórias de épocas felizes. Não suporto mais viver de passado, mas o tempo passa e tudo o que resta para me confortar é o que eu já vivi.

Thursday, June 03, 2010

363



Hoje o céu acordou frio. Rajadas de vento gelado e amarguras fatiaram as nuvens lá longe. E o sol amanheceu entre sombras. Sob a janela fechada do meu quarto noturno algumas luzes errôneas saudaram meu dia com danças tribais e imitações cômicas de vozes regionais. Eu apenas lhes agradeci. Ao meio dia, minha comida só veio ás três horas da tarde. As quatro, gritos agrediram meus pés ao mesmo tempo em que me juraram festas que eu não gostaria de compartilhar. Pés não têm boca. Olhos têm. Olhos me olham torto. E os meus olhos olharam para o céu. No céu, ao anoitecer, uma luz solitária, que outrora me dizia “bom dia”, agora flutuava perdida entre as estrelas. E o mundo se converteu em caos novamente.

Tuesday, June 01, 2010

Aniversário



O mês de junho abraçou meu dia. Após um verão de esperançosas expectativas que, como qualquer outra expectativa, se converteu em arranhões na pele e rubor nas faces, o inverno, enfim, corta meu rosto em suas tardes de terra gelada e sol reconfortante. Ás 7 horas da manhã eu nasci e em 365 dias eu estarei morta, como toda boa alma que, tendo consciência da indiferença do mundo perante sua existência, desiste de si mesma em prol da paz universal alheia. E a favor da permanência do caos generalizado que permeia as relações inter-humanas. Meu aniversário chegou com badaladas cadavéricas, anunciando que o fim se aproxima para quem tanto o deseja. A partir de hoje, minha vida caminhará em passos cronometrados e contados rumo a incessantemente perseguida “bela morte”. Se eu pudesse recomeçar em algum lugar longínquo, no qual ninguém me conhecesse e minhas desilusões passadas se resumissem a pequenos calafrios de arrependimento, minha vida estaria salva. Mas o mundo é um lugar muito pequeno e todos os seus habitantes dividem uma ideologia da qual sou incapaz de participar. Devido a esse pequeno pesar, criei uma série de contos autobiográficos destinados a narrar os últimos dias da minha vida de incômodo perpétuo.

Saturday, May 01, 2010

Revolta.



Eu costumava me achar especial.
Sim, especial como alguém abençoada por Deus que, nesse mundo, sofre injustiças e trapaças, apenas para ultrapassar a si mesma, e mostrar ao mundo como se viver plenamente, com bondade e amor pelo próximo. Quase uma espécie de novo Jesus Cristo.
Com o tempo, as trapaças e injustiças tornaram-se parte do meu dia-a-dia. E, devo admitir, ainda hoje é difícil suportá-las com dignidade e honra. A bebida acaba sendo sempre meu melhor consolo e único braço amigo. Um braço tão útil que conforta e mata ao mesmo tempo.
Eu costumava ter amigos. Sim, e pensava, inclusive, que eles também apreciavam a minha presença. Ah, eu também tinha namoradas. E bom, apesar da minha insegurança, também pensava que elas me amassem. Hoje eu sei que vivia de ilusões. Ilusões de amor fraternal, amor romântico e até mesmo amor vindo de desconhecidos. Eu pensava emitir carisma e luz por onde quer que eu passava.
Deus, se eu pudesse voltar atrás. Olhando a minha vida, como quem rebobina um filme, percebo a quão estúpida e cega eu era. Todas as situações pelas quais eu passei e todas as coisas que eu fiz, para ser simplesmente ignorada. Para ser apenas um incômodo ambulante perambulando por corredores e acenando feliz e inutilmente para as pessoas.
A partir de amanhã, mudarei a minha vida. Ou melhor, mudarei o mundo!
Sim, senhores! Serei rainha nesse mundo de plebeus. Mostrarei as pessoas o poder da minha maldade reprimida e dominarei as almas perdidas e gananciosas que se apossaram de toda a minha bondade excessiva. Oh, sim. Não haverá mais lugar para os egoístas e hipócritas no meu mundo de luz e calor. Não haverá mais lugar para amigos e namoradas que ignoraram suas amadas. Não haverá espaço para tristeza e decepção. Nunca mais. Ouvirei o grito dos aflitos e desesperados e torná-los-ei príncipes e princesas de uma nova Era.
Mas isso eu deixarei para amanhã.
Hoje ainda preciso arrumar a casa da minha amiga que, coitada, está doente e passa o dia deitada na cama, assistindo aos programas matinais na televisão. Pobrezinha, preciso ajudá-la.

Friday, February 19, 2010

Junho



O mês de Junho sorriu para mim. Seus olhos largos e lábios espalhados, cravados na pele pálida, ecoaram um leve arrepio por de trás de minhas orelhas. Seus cabelos, feito solitárias folhas verdes em árvores carregadas, dançavam contentes embalados pelo vento frio, feroz e cortante das manhãs de inverno. Eu aguardo ansiosamente pelo inverno. Um ano, para mim, só pode ser assim chamado após o inverno. Da morte se renasce e se recomeça uma nova vida. Tentei evitar, como quem tenta impedir que o sol nasça que meus olhos lacrimejassem, mas pequenas gotículas congeladas ficaram presas aos poucos fios a que chamo de cílios. O mês de Junho demonstrou preocupação. Eu lhe disse que não era nada, era o vento que me atingiu o rosto, que acertou dolorosamente minha nuca. Junho sabe a verdade das coisas, os mais mundanos e poéticos segredos nos corpos trêmulos escondidos por debaixo das roupas escuras cambaleantes. No inverno, todos os casacos e jaquetas transformam-se em bandeiras de si mesmos, tremulando de maneira indecente sobre um vento teimoso e rasteiro, defendendo suas inquestionáveis causas pessoais. As cores se tornam monocromáticas e as pessoas, sem que percebam, impõem a si mesmas o sacrifício do frio e o irresistível pecado da luxúria sob seus ombros. Junho se afastou, sorrindo, se despedindo lentamente, até que o céu se tornasse um mar de fogo infinitamente maior que o mais cruel inferno. E a Primavera, derramando flores e luz sob seus pés mansos, bateu a minha janela. Eu não a atendi.

Monday, February 01, 2010

Sangue.



Mordeu subitamente a maçã, estraçalhando sua polpa com a mesma fúria que a fome infringia a seu estomago. O suco espirrado em seus lábios escorria sedentamente até seu queixo e, então, a mão esquerda, até o momento alheia a situação, limpou de maneira automática e delicada a pele daquela região. Mastigou, sentindo cada fibra da maçã transformar-se em água sob a pressão de seus dentes. Por um momento imaginou como um gigante se sentiria ao comer, numa única bocada, um ser humano inteiro, com seus pés, braços e até mesmo roupas. “Seria parecido com isso? Não, provavelmente não. Seria como comer uma lula, com seus tentáculos roçando sua gengiva e a pele elástica amaciando seus dentes.” Percebendo a inutilidade de seus pensamentos, despertou ferozmente de seu delírio momentâneo, ela exclamou indignada para si mesma:

_ Que besteira a minha...! - e, ainda mastigando a polpa da maçã, jogou as sementes num lixo vazio e esquecido perto de onde estava para, posteriormente, lavar as mãos sujas com o suco da fruta no chafariz da praça. Esfregou a língua no céu da boca e sentiu um gosto amargo, de ferrugem entre os dentes.

Enquanto caminhava de volta para o trabalho, um ligeiro filete de sangue escorreu do canto direito de sua boca e iluminou-se sob o sol do meio-dia. Repentinamente, uma grande torrente do líquido inundou sua garganta, pingando gotas quentes de sangue fresco nos paralelepípedos gastos do chão. Tentou limpar, com o antebraço, a boca encharcada, mas o vermelho que se acumulou nas mangas brancas de sua camiseta italiana, formal e caríssima, lhe obrigou a gritar por ajuda, ainda que não sentisse dor e ainda que cada palavra que exclamava vinha acompanhada de potentes esguichos de sangue. Algumas almas bondosas que passavam pelo local, inicialmente, buscaram formas de socorrê-la de sua inexplicável implosão, todavia, quanto mais tempo se passava mais intensamente o sangue escapava de seu corpo. As pessoas ficaram temerosas, com o asco e a indiferença tomando posse de seus seres. De maneira cuidadosa, um a um dos poucos indivíduos que se dispuseram a ajudá-la se dispersaram discretamente, até que ela, mais uma vez, se deparou sozinha, cercada, unicamente, das poças de seu próprio sangue. Sua fraqueza não a impediu de rasgar suas roupas em buscar de uma ferida, um machucado qualquer que tivesse acarretado na hemorragia interna. Pensou, erroneamente, que, talvez, houvesse levado uma bala-perdida no tórax, nas costas ou até mesmo na cabeça. Aquela região suburbana era muito violenta e ela se auto-julgou imprudente ao permanecer sentada no banco de uma praça perigosa por tanto tempo. Durante alguns segundos, chegou a impor a si mesma o peso de uma culpa que não era sua, e considerou o sangramento uma forma de castigo divino por algum pecado ou maldade que havia cometido no passado. Relaxou seus ombros, ajoelhou-se nas pedrinhas finas de concreto e terra abaixo de seus pés e deitou-se com os braços abertos, pernas fechadas, no conformismo de não ter aonde se esconder ou fugir de uma morte certa. Fechou os olhos e sentiu, desimpedida, o sangue escorrer selvagemmente pelo seu corpo e atingir os ladrilhos quentes que alfineta os pés descalços das crianças no verão. Sentiu o vento abafado da hora do almoço beijar seu rosto úmido e, pela primeira vez na vida, olhou diretamente para o sol. Enxergou seu contorno azul-lilás envolto no amarelo claro hipnotizante e vital. Perguntou-se por que nunca havia tido um momento como aquele, por quê nunca havia reparado naquilo, e concluiu que apenas os corajosos o podem fazer sem temer a cegueira. Fechou apertadamente os olhos e, sob suas pálpebras, ainda via o sol vermelho afagar sua visão. O mesmo sol que queimava sua pele e que esteve ao seu lado por toda a existência. Sem que houvesse uma razão definida, os pombos da praça se aglomeraram ao seu redor, formando um círculo torto e mal arquitetado. E o sangue parou de escorrer...