Monday, February 01, 2010

Sangue.



Mordeu subitamente a maçã, estraçalhando sua polpa com a mesma fúria que a fome infringia a seu estomago. O suco espirrado em seus lábios escorria sedentamente até seu queixo e, então, a mão esquerda, até o momento alheia a situação, limpou de maneira automática e delicada a pele daquela região. Mastigou, sentindo cada fibra da maçã transformar-se em água sob a pressão de seus dentes. Por um momento imaginou como um gigante se sentiria ao comer, numa única bocada, um ser humano inteiro, com seus pés, braços e até mesmo roupas. “Seria parecido com isso? Não, provavelmente não. Seria como comer uma lula, com seus tentáculos roçando sua gengiva e a pele elástica amaciando seus dentes.” Percebendo a inutilidade de seus pensamentos, despertou ferozmente de seu delírio momentâneo, ela exclamou indignada para si mesma:

_ Que besteira a minha...! - e, ainda mastigando a polpa da maçã, jogou as sementes num lixo vazio e esquecido perto de onde estava para, posteriormente, lavar as mãos sujas com o suco da fruta no chafariz da praça. Esfregou a língua no céu da boca e sentiu um gosto amargo, de ferrugem entre os dentes.

Enquanto caminhava de volta para o trabalho, um ligeiro filete de sangue escorreu do canto direito de sua boca e iluminou-se sob o sol do meio-dia. Repentinamente, uma grande torrente do líquido inundou sua garganta, pingando gotas quentes de sangue fresco nos paralelepípedos gastos do chão. Tentou limpar, com o antebraço, a boca encharcada, mas o vermelho que se acumulou nas mangas brancas de sua camiseta italiana, formal e caríssima, lhe obrigou a gritar por ajuda, ainda que não sentisse dor e ainda que cada palavra que exclamava vinha acompanhada de potentes esguichos de sangue. Algumas almas bondosas que passavam pelo local, inicialmente, buscaram formas de socorrê-la de sua inexplicável implosão, todavia, quanto mais tempo se passava mais intensamente o sangue escapava de seu corpo. As pessoas ficaram temerosas, com o asco e a indiferença tomando posse de seus seres. De maneira cuidadosa, um a um dos poucos indivíduos que se dispuseram a ajudá-la se dispersaram discretamente, até que ela, mais uma vez, se deparou sozinha, cercada, unicamente, das poças de seu próprio sangue. Sua fraqueza não a impediu de rasgar suas roupas em buscar de uma ferida, um machucado qualquer que tivesse acarretado na hemorragia interna. Pensou, erroneamente, que, talvez, houvesse levado uma bala-perdida no tórax, nas costas ou até mesmo na cabeça. Aquela região suburbana era muito violenta e ela se auto-julgou imprudente ao permanecer sentada no banco de uma praça perigosa por tanto tempo. Durante alguns segundos, chegou a impor a si mesma o peso de uma culpa que não era sua, e considerou o sangramento uma forma de castigo divino por algum pecado ou maldade que havia cometido no passado. Relaxou seus ombros, ajoelhou-se nas pedrinhas finas de concreto e terra abaixo de seus pés e deitou-se com os braços abertos, pernas fechadas, no conformismo de não ter aonde se esconder ou fugir de uma morte certa. Fechou os olhos e sentiu, desimpedida, o sangue escorrer selvagemmente pelo seu corpo e atingir os ladrilhos quentes que alfineta os pés descalços das crianças no verão. Sentiu o vento abafado da hora do almoço beijar seu rosto úmido e, pela primeira vez na vida, olhou diretamente para o sol. Enxergou seu contorno azul-lilás envolto no amarelo claro hipnotizante e vital. Perguntou-se por que nunca havia tido um momento como aquele, por quê nunca havia reparado naquilo, e concluiu que apenas os corajosos o podem fazer sem temer a cegueira. Fechou apertadamente os olhos e, sob suas pálpebras, ainda via o sol vermelho afagar sua visão. O mesmo sol que queimava sua pele e que esteve ao seu lado por toda a existência. Sem que houvesse uma razão definida, os pombos da praça se aglomeraram ao seu redor, formando um círculo torto e mal arquitetado. E o sangue parou de escorrer...

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