Friday, February 19, 2010

Junho



O mês de Junho sorriu para mim. Seus olhos largos e lábios espalhados, cravados na pele pálida, ecoaram um leve arrepio por de trás de minhas orelhas. Seus cabelos, feito solitárias folhas verdes em árvores carregadas, dançavam contentes embalados pelo vento frio, feroz e cortante das manhãs de inverno. Eu aguardo ansiosamente pelo inverno. Um ano, para mim, só pode ser assim chamado após o inverno. Da morte se renasce e se recomeça uma nova vida. Tentei evitar, como quem tenta impedir que o sol nasça que meus olhos lacrimejassem, mas pequenas gotículas congeladas ficaram presas aos poucos fios a que chamo de cílios. O mês de Junho demonstrou preocupação. Eu lhe disse que não era nada, era o vento que me atingiu o rosto, que acertou dolorosamente minha nuca. Junho sabe a verdade das coisas, os mais mundanos e poéticos segredos nos corpos trêmulos escondidos por debaixo das roupas escuras cambaleantes. No inverno, todos os casacos e jaquetas transformam-se em bandeiras de si mesmos, tremulando de maneira indecente sobre um vento teimoso e rasteiro, defendendo suas inquestionáveis causas pessoais. As cores se tornam monocromáticas e as pessoas, sem que percebam, impõem a si mesmas o sacrifício do frio e o irresistível pecado da luxúria sob seus ombros. Junho se afastou, sorrindo, se despedindo lentamente, até que o céu se tornasse um mar de fogo infinitamente maior que o mais cruel inferno. E a Primavera, derramando flores e luz sob seus pés mansos, bateu a minha janela. Eu não a atendi.

Monday, February 01, 2010

Sangue.



Mordeu subitamente a maçã, estraçalhando sua polpa com a mesma fúria que a fome infringia a seu estomago. O suco espirrado em seus lábios escorria sedentamente até seu queixo e, então, a mão esquerda, até o momento alheia a situação, limpou de maneira automática e delicada a pele daquela região. Mastigou, sentindo cada fibra da maçã transformar-se em água sob a pressão de seus dentes. Por um momento imaginou como um gigante se sentiria ao comer, numa única bocada, um ser humano inteiro, com seus pés, braços e até mesmo roupas. “Seria parecido com isso? Não, provavelmente não. Seria como comer uma lula, com seus tentáculos roçando sua gengiva e a pele elástica amaciando seus dentes.” Percebendo a inutilidade de seus pensamentos, despertou ferozmente de seu delírio momentâneo, ela exclamou indignada para si mesma:

_ Que besteira a minha...! - e, ainda mastigando a polpa da maçã, jogou as sementes num lixo vazio e esquecido perto de onde estava para, posteriormente, lavar as mãos sujas com o suco da fruta no chafariz da praça. Esfregou a língua no céu da boca e sentiu um gosto amargo, de ferrugem entre os dentes.

Enquanto caminhava de volta para o trabalho, um ligeiro filete de sangue escorreu do canto direito de sua boca e iluminou-se sob o sol do meio-dia. Repentinamente, uma grande torrente do líquido inundou sua garganta, pingando gotas quentes de sangue fresco nos paralelepípedos gastos do chão. Tentou limpar, com o antebraço, a boca encharcada, mas o vermelho que se acumulou nas mangas brancas de sua camiseta italiana, formal e caríssima, lhe obrigou a gritar por ajuda, ainda que não sentisse dor e ainda que cada palavra que exclamava vinha acompanhada de potentes esguichos de sangue. Algumas almas bondosas que passavam pelo local, inicialmente, buscaram formas de socorrê-la de sua inexplicável implosão, todavia, quanto mais tempo se passava mais intensamente o sangue escapava de seu corpo. As pessoas ficaram temerosas, com o asco e a indiferença tomando posse de seus seres. De maneira cuidadosa, um a um dos poucos indivíduos que se dispuseram a ajudá-la se dispersaram discretamente, até que ela, mais uma vez, se deparou sozinha, cercada, unicamente, das poças de seu próprio sangue. Sua fraqueza não a impediu de rasgar suas roupas em buscar de uma ferida, um machucado qualquer que tivesse acarretado na hemorragia interna. Pensou, erroneamente, que, talvez, houvesse levado uma bala-perdida no tórax, nas costas ou até mesmo na cabeça. Aquela região suburbana era muito violenta e ela se auto-julgou imprudente ao permanecer sentada no banco de uma praça perigosa por tanto tempo. Durante alguns segundos, chegou a impor a si mesma o peso de uma culpa que não era sua, e considerou o sangramento uma forma de castigo divino por algum pecado ou maldade que havia cometido no passado. Relaxou seus ombros, ajoelhou-se nas pedrinhas finas de concreto e terra abaixo de seus pés e deitou-se com os braços abertos, pernas fechadas, no conformismo de não ter aonde se esconder ou fugir de uma morte certa. Fechou os olhos e sentiu, desimpedida, o sangue escorrer selvagemmente pelo seu corpo e atingir os ladrilhos quentes que alfineta os pés descalços das crianças no verão. Sentiu o vento abafado da hora do almoço beijar seu rosto úmido e, pela primeira vez na vida, olhou diretamente para o sol. Enxergou seu contorno azul-lilás envolto no amarelo claro hipnotizante e vital. Perguntou-se por que nunca havia tido um momento como aquele, por quê nunca havia reparado naquilo, e concluiu que apenas os corajosos o podem fazer sem temer a cegueira. Fechou apertadamente os olhos e, sob suas pálpebras, ainda via o sol vermelho afagar sua visão. O mesmo sol que queimava sua pele e que esteve ao seu lado por toda a existência. Sem que houvesse uma razão definida, os pombos da praça se aglomeraram ao seu redor, formando um círculo torto e mal arquitetado. E o sangue parou de escorrer...