Sunday, November 25, 2007

O morto mais lindo do mundo.




I

Quando viu o corpo na mesinha de operação pensou que fosse algum funcionário do hospital e que aquilo não passava de uma brincadeira sem graça. Só quando olhou a ficha do paciente, um arrepio subiu-lhe á nuca, e pôde comprovar que de fato se tratava do morto.
Nesses nove anos de profissão, jamais tinha visto um morto tão belo e bem conservado. Estava realmente morto, a falta de pulsação indicava isso. Mas, algo nos globos brilhantes de seu rosto contradizia sua situação. Tinha-se a sensação de que a qualquer momento ele iria deixar escapar um respiro, um piscar de olhos, um bocejo, um espirro.

Em todo o caso, o trabalho não podia parar. Ela foi até o armário onde guardava suas ferramentas de trabalho, tirou de uma das gavetas um bisturi, e seguiu em direção ao morto. Marcou, com uma caneta, um pontinho um pouco abaixo do pescoço, e outro no umbigo do morto.
Posicionou delicadamente a fina lamina na pele macia dele, tentou empurrar o bisturi estomago adentro, mas aquilo lhe parecia tão profano que não o foi capaz.
Que direito tinha, ela, de machucar aquele corpo incrivelmente belo, que apesar das falências vitais, ainda emitia um frescor tão vivo e irresistível? Um simples corte seria capaz de danificar a imagem perfeita que tinha a sua frente.

Não era possível que estivesse morto.
Aquele corpo feria seu orgulho. Por sua mesa de cirurgia já havia passado corpos falecidos em acidentes de carro, em acidentes de avião, envenenados, esfaqueados, suicidas, deformados, homicidas, decepados, decapitados, baleados. Mas nunca, nada jamais comparado aquilo.

Parecia um santo, um anjo, Deus personificado apenas para o seu prazer visual.





















II

Não foi capaz de terminar, sequer começar, a autopsia. Estava tão perturbada com a imagem do defunto que também não pôde dormir. Passou a noite em claro, esperando que o amanhecer iluminasse suas idéias. Mas, na manhã seguinte, assim que voltou para o necrotério, e percebeu que o corpo não estava mais lá, entrou em pânico.
Saiu pelos corredores gritando e praguejando aos quatro quantos do mundo. Perguntando para o ar quem havia tirando seu amado de lá. E obteve uma resposta seca e comercial do diretor do hospital “houve uma pequena confusão nos papeis do falecido, não se sabe como ou onde, mas trocaram sua ficha com a de outro, sendo este estava em outra instituição, portanto, a troca foi feita e agora tudo corre bem”.

De certo modo, ela ficou feliz com a resposta. Aquele morto era tão enigmático que cedo ou tarde iria causar-lhe problemas externos, ou internos. Voltou á rotina, com todos os
Bisturis e
Cadáveres e
Órgãos e
Fichas e
Pacientes e
Recibos e
Doutores e
Alunos e
Parentes inconsoláveis e
A morte e
(Essa sim, sempre por perto)
E...





















Faltava algo...

III

Mesmo com todos os calmantes e antidepressivos, ela não conseguia se concentrar. O trabalho se tornou quase tão destrutivo quanto a lembrança do morto. A rotina entrava junto com os raios de sol pela janela, despertava o despertador e circulava ao seu redor durante todo o dia. E lhe doíam todas as fibras do coração. E lhe doíam as pessoas, com suas usualidades e casualidades. E a vida lhe doía.

Estava tão transtornada com o encontro com aquele anjo em decomposição que a vida não merecia ser vivida se não ao lado dele.
Na mesma noite, se dirigiu quase que como uma sonâmbula, ao cemitério. E desenterrou todas as covas que pode. Passou as mãos empapadas de sangue e barro pelos olhos, para se confirmar que não estava sonhando, e não estava. Ás quatro da manhã, após uma busca frenética que transformou o cemitério em diversos buracos gigantes com gigantes trincheiras de terra fofa, ela havia encontrado seu amado.
Deitou-se ao seu lado no caixão apertado e untado com os líquidos verdes e nauseabundos que o corpo dele expelia, posicionou a cabeça em seu ombro nu, e dormiu. Sonhou com a estreiteza de sua vida, de seu corpo, de sua beleza, e de sua morte comparadas ás daquele corpo. E todos os homens, e todas as mulheres, e até mesmo Deus seria incapaz de emitir uma luminosidade tão viva como ele. E ela daria sua vida, em troca de viver a morte ao lado dele. Pois até mesmo a morte, só seria digna, se fosse com ele.

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