Wednesday, June 23, 2010

Velhice.



Sob a luz do amanhecer, percebeu que a mulher estava quieta demais.
Em geral, a esposa costumava resmungar, roubar o edredom e rolar na cama, empurrando o marido para o chão, enquanto dormia. Durante os primeiros meses de casamento, ele tardou a adaptar-se ao agitado sono dela. Mas, após sessenta e cinco anos de casados, parou de ir dormir no sofá quando a noite não prometia nada, e acostumou-se com os movimentos bruscos da mulher no decorrer da madrugada. Por isso estranhou a tranqüilidade da esposa na noite anterior. Pensou que, talvez, com a idade, o cansaço acumulado dos anos pelo corpo a tivesse acalmado. E, de fato, cultivou essa idéia enquanto se arrumava para comprar pão na padaria da esquina. Ele era aposentado. Trabalhou a vida inteira como engenheiro, construiu prédios por todo o país, inclusive a casa na qual os dois moravam. Agora, as paredes de cada cômodo tinham rachaduras e infiltrações. Mas ainda assim, ressoavam o charme e o esplendor de outrora. Outra época, outra vida. Hoje, só restavam cacos do homem que era há décadas atrás. O cabelo brilhante, refletindo sob as luzes noturnas nas ruas dos anos 50. As mulheres com seus vestidos compridos, óculos grossos e sutiãs pontudos, piscando discretamente para ele. Era um rapaz bonito. “Encantador”, ele seria capaz de dizer. Embora não tivesse mais aqueles músculos, ainda mantinha a mesma postura física. A cabeça erguida, mãos para trás, como quem espera, de maneira esnobe e inquieta, pelo impossível. Olhou-se nos olhos, no espelho do quarto. Buscou bem no fundo de sua alma se ainda havia algum vestígio da personalidade errante que possuía. Não soube responder a si mesmo. Mas, conclui que, da mesma forma que perdeu fio a fio de seu cabelo brilhante, também havia perdido, em algum dos muitos anos de sua vida, o charme que lhe era peculiar. Terminou de dar o nó na gravata. Sabia que os jovens olhavam suas roupas com estranhamento, mas era incapaz de aderir à moda atual. Tinha asco dos velhos que se vestiam como se ainda tivessem 20 anos. Ele não era esse tipo de pessoa, não mentia para si mesmo, não buscava disfarçar a idade com roupas, as rugas com cirurgias plásticas e a impotência sexual com remédios. Olhou de relance, ainda pelo espelho, para a esposa. Ela não mexera nenhum dedo desde que ele acordou. Por um segundo, a idéia de que finalmente a vida abandonou o corpo de sua mulher lhe veio à cabeça. Buscou afastar, inutilmente, tal pensamento. Mas, na idade em que ambos estavam, ignorar que não se vive mais para o futuro, mas sim para uma morte cada dia mais próxima, era inevitável. Colocou os sapatos engraxados e foi até a cozinha. Abriu a geladeira antiga. Não tinham leite. Adicionou o item à lista das compras que faria na padaria e desceu as escadas. Sempre que saia na rua procurava por casas, calçadas, bancos de praça e prédios cujo material de construção ou a própria arquitetura lhe remetesse ao passado. Tinha consciência da inutilidade de tal busca. Ele sabia que o passado, no qual ele viveu com tanto empenho, jamais voltaria novamente. Mas, tinha uma necessidade insistente de reviver os lugares, embora muitos deles já houvessem se perdido no tempo há muitas eras atrás. Defronte a padaria, avistou um fusquinha amarelo atravessar a rua e perguntou-se, mentalmente, se aquele carro ainda se lembrava dos anos em que ele, agora um velho aposentado, mantinha seu império de glória e felicidade. Seguiu o carro com os olhos. O padeiro lhe sorriu, apreciando, com discreto deboche, o senhor absorto na porta de seu estabelecimento comercial. “Venha, entre, Sr. Joaquim! Acabaram de sair do forno uma porção de pãezinhos quentes.” O velho, acostumado a passar por situações constrangedoras e apto a captar sorrisos desdenhosos e olhares de pena voltados à sua direção, apenas acenou para o padeiro. Girou mecanicamente ao redor de seu próprio corpo e voltou-se a direção de onde viera. O que acabou causando ainda mais risos no padeiro. Voltando para a casa, arrependido pelo gesto impulsivo e cômico, o senhor idoso repensava, mais uma vez, em sua juventude. “Antes o céu era tão azul. Tão vivo. Hoje há tantas nuvens para descolori-lo que nem vale mais a pena olhar pra cima” pensou enquanto olhava para o chão. “A vida é fácil e bonita. São as escolhas que a tornam feia. Eu fiz as escolhas certas que, com o tempo, se transformaram em escolhas erradas. Mas só se vive uma vez. E ao final, as boas lembranças que nunca mais voltarão acabam remoendo a sua alma perpetuamente”. Continuou seguindo em direção a sua antiga casa. “Ah, eu não posso reclamar da minha vida. Ela foi incrível. Eu vivi de uma forma que ninguém poderia imaginar. Eu fui feliz de uma forma que ninguém poderia sentir... mas tudo tem um fim”. Abriu a porta de madeira que dava para a rua, na qual cada uma das rachaduras representava uma recordação calorosa e nostálgica de um passado distante. Subiu as escadas. Torceu a maçaneta e abriu a porta com um estrondoso ruído. “... E ás vezes, algumas vidas acabam antes mesmo de chegarem ao fim” pensou enquanto direcionava os olhos para o interior da casa e para a esposa imóvel. A mulher continuava da mesma forma que ele havia deixado. O sol que escapava da janela refletia em seus cabelos brancos, a pele opaca e enrugada, porém ainda fresca e macia. Ele foi até ela. Sentou-se ao lado do corpo inerte. Segurou, cuidadosamente, a mão esquerda da esposa. Estava fria. Mas era um frio morno. Morno ambíguo. Em todo o caso, ele sentia que algo havia deixado de existir. Algo forte e fundamental. Por alguns segundos, sua vida correu sob sua vista. Desde sua infância, cujas memórias eram incertas e fragmentadas, passando pela ardente juventude que sempre emana uma felicidade dolorosa e, por fim, chegando à vida matura no escritório, com réguas, compassos e calculadoras ao redor de sua mesa. O homem percebeu que jamais realizou seu grande sonho, que era ser desenhista. Apenas fez dinheiro de seu talento. “Mas os sonhos nunca se realizam mesmo” conformou-se consigo próprio. Desviou o olhar para o rosto da mulher. Ela continuava linda. O tempo não conseguiu apagar os traços finos, as maçãs altivas e a boca vermelha de sua face. O tempo não apagou o amor do coração dele. Ele ainda a amava. Lembrou-se de que, com exceção de sua infância, em todas as ocasiões seguintes de sua vida, ela estava presente. Alertando-o dos perigos de uma escolha mal direcionada, de amizades incertas e de desvios em seu caminho de vitórias e triunfos. Sem ela, sua vida não faria mais sentido. Sem aquela mulher com a qual ele dividiu mais de três quartos de sua vida, só restaria sentar-se, observando a vida dos outros passar pela janela, e aguardar ansiosamente a chegada da sua própria morte. Mas a morte dos outros sempre chega mais cedo. Quem ama mais está sempre condenado a sofrer mais do que quem ama menos. E, nessa vida, ele a amava muito mais. “E agora... o que me resta?” cochichou baixinho para as paredes. Sua visão estava turva. Sua vida se desmaterializou em sua frente. Com todas as suas forças, ele tentou desviar o pensamento inevitável. E não o conseguiu. Hesitou. Mas, por fim, decidiu-se convencido da inutilidade de aguardar mais. E foi-se exitoso em sua missão. Sob ás 9h30min do dia 7, uma manhã calma e quente acalentava os olhos assustados das pessoas na rua. O sangue jorrando de um coração quebrado, como um poço de esgoto aberto, anunciava o fim de uma vida. Todos os pensamentos, os sonhos secretos, alguns decretados para outrem, outros, há tanto esquecidos, com amantes esquecidas, jamais seriam mencionados ou reprisados em qualquer outra mente humana, enfim, perderam-se para sempre. Sob ás 9h45min do dia 7, uma manhã calma e quente acalentava os olhos sorridentes de uma senhora numa cama. Ela levantou-se de seu falso despertar. Trocou o pijama velho e desbotado por um vestido antigo, igualmente desbotado, porém infinitamente mais charmoso e elegante. Tirou, debaixo da cama, uma mala antiga com poucas fotos e adesivos de viagem. Tirou do guarda-roupa as muitas roupas que tinha. Depositou as mais bonitas na mala e, entre elas, guardou um compasso do marido, em sua homenagem. A senhora olhou-se no espelho. Seus olhos vividos, sorridentes e cantadores lhe disseram bom dia. Ela lhes cumprimentou de volta. Pintou de vermelho a boca rosa e sorriu para si mesma. Estava feliz. Aquele dia era um dia glorioso. “A liberdade cheira tão bem. Nem mesmo o mofo dessas paredes consegue apagá-la”. Foi até a cozinha. Abriu a geladeira em busca de algo para comer. Não tinha leite, mas ela não se preocupou em anotar numa lista para comprar depois. Apenas pegou uma maçã brilhante, poliu-a e fechou a porta. Desceu as escadas radiante. O dia estava lindo. O céu azul, de um azul intenso e saturado clamava por aventuras. Ela cumprimentou o mundo e o mundo abraçou-a também, com força, para a vida.

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